O Globo
O perfil dos escolhidos nos próximos anos poderá
dominar o Supremo por décadas
Em junho de 2022, a Suprema Corte americana, numa virada histórica, reverteu a decisão Roe vs. Wade, que garantia o direito ao aborto nos Estados Unidos. Um ano depois, novamente por 6 votos a 3, definiu que as universidades americanas não poderiam mais usar a raça dos alunos para selecioná-los. A guinada conservadora da Justiça americana não se deu depois de uma ofensiva parlamentar que tenha levado ao impeachment de seus juízes ou aumentado o número de cadeiras, como prega a receita contemporânea de desconstrução das democracias. Foi obra da fortuna e do método do Partido Republicano em, além de usar sua maioria parlamentar para bloquear uma indicação de Barack Obama, apontar nomes ideologicamente leais e jovens, que ficariam décadas na Corte, onde o cargo é vitalício.
O ex-presidente Jair
Bolsonaro já cantou em verso e prosa que sua maior missão em 2026 é
garantir a eleição de um Congresso abertamente conservador. Mais que isso:
deixa claro que o foco está em assegurar, no Senado, uma maioria que permita a
seu grupo enquadrar o Supremo Tribunal Federal (STF). O sonho é a votação do
impeachment de ministros, Alexandre
de Moraes à frente.
A preocupação em evitar o assalto
bolsonarista ao Supremo cria, no entanto, uma cortina sobre o que pode mais
suavemente redefinir o futuro do sistema judicial brasileiro. A questão não
está em quem chegará ao Salão Azul do Senado, mas sim em quem tomará posse no Palácio
do Planalto.
No próximo mandato presidencial, três
ministros de perfil moderado — Luiz Fux, Gilmar
Mendes e Cármen
Lúcia — atingirão a idade-limite de 75 anos e serão obrigados a se
aposentar. Os dois mais progressistas do tribunal, Luís
Roberto Barroso e Edson
Fachin, terão de pendurar a toga em 2033, no mandato presidencial seguinte.
Depois desse grupo, as próximas saídas compulsórias só ocorrerão a partir de
2042. O perfil dos escolhidos nos próximos anos poderá dominar o Supremo por
décadas.
Desde o segundo mandato de Lula,
o STF aproveitou-se muitas vezes da omissão do Poder Legislativo para adotar
uma série de decisões históricas em defesa de direitos e liberdades individuais
— tendo nos ministros que agora se aproximam da aposentadoria personagens
cruciais para essa agenda.
Fux, Gilmar e Cármen votaram alinhados em
2011 e 2012 a favor do reconhecimento das uniões homoafetivas, da liberação do
aborto de anencéfalos e da legalidade das cotas raciais nas universidades.
Barroso e Fachin ingressaram na Corte e se juntaram ao trio nos julgamentos
pela derrubada da tese de Marco Temporal para demarcação de terras indígenas,
pela descriminalização da maconha e pela equiparação da homofobia ao racismo.
A polarização política que se acentuou há
pouco mais de dez anos mudou a forma de escolha dos ministros. Desde a
redemocratização, para chegar ao Supremo o saber jurídico dos candidatos sempre
precisou ser acompanhado de boa capacidade de construir apoios políticos ou
vínculos pessoais com o presidente. O posicionamento político individual ficava
frequentemente em segundo plano. Em seus primeiros governos, Lula indicou oito
nomes com os mais diversos perfis, de abertamente progressistas a
militantemente conservadores.
Em suas indicações, a presidente Dilma
Rousseff deu mais atenção à linha ideológica dos escolhidos, mas
deixou a idade deles em segundo plano. Bolsonaro foi cirúrgico na estratégia:
ao escolher Nunes Marques e André
Mendonça, ambos com 48 anos na época da nomeação, conseguiu criar um
enclave de longo prazo em apoio a sua agenda. As entregas vêm sendo feitas não
só nos julgamentos ligados à tentativa de golpe de Estado, como foram exibidas
nos votos em defesa do Marco Temporal e contra a descriminalização da maconha.
O que ocorreu nos Estados Unidos deveria
acender um alerta sobre o cenário que se avizinha para o Supremo. Ainda que a
eleição de uma bancada de senadores majoritariamente conservadora seja hoje
considerada provável mesmo dentro do PT, a
tendência é que muitos nomes sejam ex-governadores e figuras ilustres do
Centrão, cujas biografias não servem de incentivo para enfrentar aqueles que
julgarão seus processos. Mas, se a trilha para o impeachment é acidentada, a
indicação presidencial de nomes ao STF é uma avenida expressa. Há 131 anos um
presidente não vê seu nomeado para o tribunal ser rejeitado.
*Paulo Celso Pereira é editor executivo do
GLOBO
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