O Globo
Sther Barroso dos Santos não foi a primeira.
Tampouco terá sido a última vítima de feminicídio, epidemia consolidada no Rio
de Janeiro e Brasil afora. A jovem, de 22 anos, esteve no baile funk da
comunidade da Coreia, em Senador Camará,
Zona Oeste carioca, no fim de semana passado. Lá, refutou envolvimento com
Bruno da Silva Loureiro, alcunha Coronel, chefe da facção criminosa que domina
a favela do Muquiço, em Guadalupe. A
recusa custou-lhe a vida. Ela foi brutalmente espancada e deixada na porta de
casa, na Vila Aliança, com o rosto desfigurado e sinais de violência sexual.
Socorrida por familiares, chegou morta ao hospital.
No país, feminicídio — consumado e tentado — é tragédia cotidiana. O ano passado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foi de registro recorde nos dois crimes. Ao todo, 1.492 feminicídios, alta de 0,7% sobre 2024, e 3.870 tentativas, salto de 19%. Sete em cada dez vítimas tinham entre 18 e 44 anos; dois terços eram negras; 97% dos assassinos eram homens. A Polícia Militar, via serviço 190, foi chamada mais de 1 milhão de vezes para atender casos de violência doméstica; uma ligação a cada dois minutos. O número de estupros também foi o maior da série histórica: 87.545 vítimas, 77% vulneráveis, condição de quem tem menos de 14 anos ou, por razões de saúde ou perda de consciência, não pôde se defender.
As estatísticas dão conta de um território
hostil a mulheres e tolerante com a violência de gênero. A roupa curta ou
decotada, o batom vermelho, o salto alto, a risada, a atitude, a autonomia, a
coragem, as escolhas integram o rol de justificativas sacadas para justificar o
injustificável e despejar nas vítimas a culpa pela brutalidade que sofreram.
“Bela, recatada e do lar” ainda é bordão que projeta, para muita gente, o ideal
de mulher.
No Estado do Rio, de janeiro a julho deste
ano, pelos dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), 53
mulheres tiveram existência interrompida. Foram praticamente duas famílias
enlutadas por semana. Na que passou, choraram Carina Couto e Stefany,
respectivamente mãe e irmã de Sther. O rosto da jovem precisou ser
reconstituído para que o velório se realizasse com o caixão aberto. Uma tia
contou à repórter Anna Bustamante, do GLOBO, que os assassinos deixaram a
sobrinha “irreconhecível”:
— Além do espancamento, ainda teve o estupro.
A menina era uma princesa, parecia uma boneca. Mesmo com todo o trabalho do
IML, ela continuava desfigurada. Eles acham que são donos de todas as pessoas
da comunidade.
É nesse ponto que o assassinato de Sther se
descola do padrão da epidemia feminicida do Brasil. Padrão e epidemia não
deveriam ser palavras usadas para tratar de crimes contra a vida. Mas são. Oito
em cada dez são mortas por companheiros ou ex; dois terços, atacadas dentro de
casa. A jovem da Vila Aliança perdeu a vida por ser mulher, mas também morreu
de Rio de Janeiro.
Há quase duas décadas, o Grupo de Estudos de
Novas Ilegalidades (Geni/UFF) acompanha o domínio de facções do tráfico e da
milícia na Região Metropolitana do Rio. De 2008 a 2023, a porção do território
urbano controlado pelo crime dobrou: de 8,8% para 18,2%. São 466 quilômetros
quadrados com entrada e saída, transporte, habitação, lazer e atividade
econômica, incluindo venda de gás de cozinha, acesso à internet e entrega de
mercadorias, subordinados aos grupos civis armados. Há cerceamento do direito
ao voto. Há tribunais que julgam, matam e ocultam cadáveres em cemitérios
clandestinos, condenando famílias a ter seus filhos eternamente desaparecidos.
A brutalidade contra Sther — além do
assassinato, a desova na porta de casa, pelas mãos de dois comparsas de Coronel
— escancarou também o controle sobre o desejo, a autonomia e o corpo feminino.
O chefe do tráfico, dono do morro, estuprou e matou por não aceitar a recusa da
jovem. Tratou a moça como propriedade, tal como costuma fazer com becos, vielas
e ruas da favela, com produtos e serviços.
A ONU divulgou
recentemente que 612 milhões de meninas e mulheres vivem em áreas de conflito,
sujeitas a fome, morte, deslocamentos forçados, violência sexual. Na semana
passada, o médico congolês Denis Mukwege, Nobel da Paz em 2018, apresentou no
Rio Innovation Week a campanha internacional Linha Vermelha, pelo fim do
estupro como arma de guerra. Para ele, a responsabilização individual dos
criminosos é importante, mas insuficiente:
— Os Estados também precisam ser punidos.
O criminoso Coronel, 12 mandados de prisão
emitidos por organização criminosa, homicídio qualificado e associação para o
tráfico, matou Sther. Mas o Estado tem sangue nas mãos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário