sábado, 23 de agosto de 2025

Morreu de Rio de Janeiro, por Flávia Oliveira

O Globo

Sther Barroso dos Santos não foi a primeira. Tampouco terá sido a última vítima de feminicídio, epidemia consolidada no Rio de Janeiro e Brasil afora. A jovem, de 22 anos, esteve no baile funk da comunidade da Coreia, em Senador Camará, Zona Oeste carioca, no fim de semana passado. Lá, refutou envolvimento com Bruno da Silva Loureiro, alcunha Coronel, chefe da facção criminosa que domina a favela do Muquiço, em Guadalupe. A recusa custou-lhe a vida. Ela foi brutalmente espancada e deixada na porta de casa, na Vila Aliança, com o rosto desfigurado e sinais de violência sexual. Socorrida por familiares, chegou morta ao hospital.

No país, feminicídio — consumado e tentado — é tragédia cotidiana. O ano passado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foi de registro recorde nos dois crimes. Ao todo, 1.492 feminicídios, alta de 0,7% sobre 2024, e 3.870 tentativas, salto de 19%. Sete em cada dez vítimas tinham entre 18 e 44 anos; dois terços eram negras; 97% dos assassinos eram homens. A Polícia Militar, via serviço 190, foi chamada mais de 1 milhão de vezes para atender casos de violência doméstica; uma ligação a cada dois minutos. O número de estupros também foi o maior da série histórica: 87.545 vítimas, 77% vulneráveis, condição de quem tem menos de 14 anos ou, por razões de saúde ou perda de consciência, não pôde se defender.

As estatísticas dão conta de um território hostil a mulheres e tolerante com a violência de gênero. A roupa curta ou decotada, o batom vermelho, o salto alto, a risada, a atitude, a autonomia, a coragem, as escolhas integram o rol de justificativas sacadas para justificar o injustificável e despejar nas vítimas a culpa pela brutalidade que sofreram. “Bela, recatada e do lar” ainda é bordão que projeta, para muita gente, o ideal de mulher.

No Estado do Rio, de janeiro a julho deste ano, pelos dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), 53 mulheres tiveram existência interrompida. Foram praticamente duas famílias enlutadas por semana. Na que passou, choraram Carina Couto e Stefany, respectivamente mãe e irmã de Sther. O rosto da jovem precisou ser reconstituído para que o velório se realizasse com o caixão aberto. Uma tia contou à repórter Anna Bustamante, do GLOBO, que os assassinos deixaram a sobrinha “irreconhecível”:

— Além do espancamento, ainda teve o estupro. A menina era uma princesa, parecia uma boneca. Mesmo com todo o trabalho do IML, ela continuava desfigurada. Eles acham que são donos de todas as pessoas da comunidade.

É nesse ponto que o assassinato de Sther se descola do padrão da epidemia feminicida do Brasil. Padrão e epidemia não deveriam ser palavras usadas para tratar de crimes contra a vida. Mas são. Oito em cada dez são mortas por companheiros ou ex; dois terços, atacadas dentro de casa. A jovem da Vila Aliança perdeu a vida por ser mulher, mas também morreu de Rio de Janeiro.

Há quase duas décadas, o Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades (Geni/UFF) acompanha o domínio de facções do tráfico e da milícia na Região Metropolitana do Rio. De 2008 a 2023, a porção do território urbano controlado pelo crime dobrou: de 8,8% para 18,2%. São 466 quilômetros quadrados com entrada e saída, transporte, habitação, lazer e atividade econômica, incluindo venda de gás de cozinha, acesso à internet e entrega de mercadorias, subordinados aos grupos civis armados. Há cerceamento do direito ao voto. Há tribunais que julgam, matam e ocultam cadáveres em cemitérios clandestinos, condenando famílias a ter seus filhos eternamente desaparecidos.

A brutalidade contra Sther — além do assassinato, a desova na porta de casa, pelas mãos de dois comparsas de Coronel — escancarou também o controle sobre o desejo, a autonomia e o corpo feminino. O chefe do tráfico, dono do morro, estuprou e matou por não aceitar a recusa da jovem. Tratou a moça como propriedade, tal como costuma fazer com becos, vielas e ruas da favela, com produtos e serviços.

ONU divulgou recentemente que 612 milhões de meninas e mulheres vivem em áreas de conflito, sujeitas a fome, morte, deslocamentos forçados, violência sexual. Na semana passada, o médico congolês Denis Mukwege, Nobel da Paz em 2018, apresentou no Rio Innovation Week a campanha internacional Linha Vermelha, pelo fim do estupro como arma de guerra. Para ele, a responsabilização individual dos criminosos é importante, mas insuficiente:

— Os Estados também precisam ser punidos.

O criminoso Coronel, 12 mandados de prisão emitidos por organização criminosa, homicídio qualificado e associação para o tráfico, matou Sther. Mas o Estado tem sangue nas mãos.

 

Nenhum comentário: