O longo percurso da decadência geopolítica no período entre a reunião de Ialta e a encenação em Anchorage
As coisas mudam superficialmente, mas
continuam iguais. Não é questão de saudosismo, mas de averiguar os
comportamentos dos participantes das reuniões ocorridas no Alasca, neste
2025, e em Ialta, nos idos de 1945, e avaliar seus propósitos e
resultados. Nesses tempos sombrios, quado se questiona até o valor de se
aprender História, as indagações de internautas e influencers são
sintomáticas: Para que serve? Onde se compra? Dá para monetizar? Não dá,
não tem valor, utilidade. Vence a narrativa, as mil caras, bocas e gestos, a
superficialidade, o raso. Como diz a música Brain Damage, os lunáticos estão em Anchorage, no
Alasca. Putin and Trump.
A menosprezada e maltratada história ensina, porém, que já foi diferente. Entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, a conferência de Ialta reuniu Josef Stalin, representando a União Soviética, Winston Churchill, representando o Império Britânico, e o artífice do encontro, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, que sairia como grande vencedor da Segunda Guerra Mundial, juntamente com os soviéticos. Muitas fotos dos três sentados um ao lado do outro que ultrapassaram o marketing pessoal e trouxeram soluções, metas para alcançar a paz. O ponto principal foi definido: discutir o futuro da Europa e do mundo com a derrota iminente poucos meses depois da Alemanha nazista. Diferentemente da cúpula do Alasca, marcada por muitas selfies, muito show, poucos resultados ou nenhum. The show must go on. A guerra Rússia e Ucrânia não só continua, como Trump não conseguiu nada de Putin.
Em Ialta, sob a batuta de Roosevelt e
concordância de Stalin e Churchill, iria avançar a criação da Organização das
Nações Unidas com a missão de garantir a paz e a segurança internacionais. Em Anchorage,
sob a batuta de Trump e discordância de Putin, sai a criação da Organização das
Nações Desunidas, com a missão de dividir para reinar. No ocaso do império
norte-americano, o Calígula Laranja, sentado no Salão Oval da Casa Branca,
dispara ameaças na linha “eu mando, você obedece”. Mas, tudo indica, nosso
estagiário do segundo escalão da KGB, a antiga e temida agência de espionagem
soviética, não está nem aí, muito ao contrário, ameaça. Essa cúpula está mais
para cópula, desculpem o trocadilho. Como diz o ditado popular: desse mato não
sai cachorro.
A diferença entre as conferências não está
apenas abrigada nas propostas debatidas, mas exige considerações sobre quem
lidera e conduz. Em Ialta, Roosevelt. No Alasca, supostamente Trump.
Vamos entregar Trump a seus devaneios e
seguir o historiador Michael Dobbs. No livro Seis Meses de 1945, Dobbs faz
uma narrativa profunda e cuidadosa da preparação da reunião de Ialta e dos
episódios mais expressivos do conclave.
Pedimos desculpas pela longa citação de Dobbs: “Os Três Grandes (Roosevelt, Stalin e Churchill) reuniram-se para sua derradeira sessão plenária no domingo, 11 de fevereiro, no salão de baile do Palácio Livadia. Uma pilha de documentos estava sobre a mesa, diante de cada um deles. Os líderes começaram a folheá-los, seção por seção, examinando atentamente o vocabulário empregado. Churchill, que se orgulhava de seu estilo literário, fez restrições à quantidade de americanismos no comunicado final. “Há um excesso de joints (conjuntos)”, reclamou, indicando uma sentença sobre “nossos planos militares conjuntos”. Ele preferia “nossos planos militares combinados”. Para um inglês, a palavra joint lembrava “a família reunida no domingo para comer carneiro assado”. Chegou-se a um acordo com “os planos militares das três potências aliadas”.
O historiador prossegue: “Roosevelt e Stalin
não estavam dispostos a discutir escaramuças. Cada um dava um jeito de se
adequar à linguagem do outro para aprovar as passagens mais substanciais do
texto. OK, disse rindo bastante Stalin, num inglês macarrônico de sotaque
carregado. Khorosho, concordou Frank Delano, num russo americanizado. Houve um
debate bem-humorado sobre quem deveria assinar o comunicado primeiro. Churchill
reivindicou para si o privilégio, com base na ordem alfabética e na idade. Para
Stalin, isso não era problema algum, já que preferia ser o último a assinar.
‘Se a assinatura de Stalin for a primeira, as pessoas dirão que ele comandou a
discussão.’ Roosevelt deixou que os dois outros fizessem como queriam,
concordando em assinar em segundo lugar”.
Roosevelt enfrentou com coragem e sabedoria a
Grande Depressão. Em seu discurso de 1936, proferido na campanha para a
primeira reeleição, desferiu ataques aos poderes da oligarquia, poderes que
precipitaram a crise de 1929. “Mais da metade da riqueza corporativa do país
estava sob o controle de menos de 200 grandes corporações. Isso não é tudo.
Essas grandes corporações, em alguns casos, nem tentaram competir entre si”,
afirmou. “Eles próprios estavam ligados por diretores, banqueiros e advogados
interligados. Essa concentração de riqueza e poder foi construída sobre o
dinheiro de outras pessoas, os negócios de outras pessoas, o trabalho de outras
pessoas. Sob essa concentração, os negócios independentes só podiam existir por
sofrimento. Tem sido uma ameaça ao sistema social, bem como ao sistema
econômico que chamamos de democracia americana.”
Roosevelt dizia que a moderna civilização,
depois de demolir as velhas dinastias, erigiu outras. “Novos impérios foram
construídos a partir do controle das forças materiais. Mediante o novo uso das
corporações, dos bancos e da riqueza financeira, da nova maquinaria da
indústria e da agricultura, do trabalho e do capital – nada disso sonhado pelos
fundadores da pátria –, a estrutura da vida moderna foi totalmente convertida
ao serviço da nova realeza. Não havia lugar nos seios da nova nobreza para
abrigar os milhares de pequenos negócios e comerciantes que desejavam fazer um
uso sadio do sistema americano de livre-iniciativa e busca do lucro… Sedentas
de poder, elas se lançaram ao controle do governo. Criaram um novo despotismo
envolvido nas roupagens da legalidade. Mercenários a seu serviço trataram de
submeter o povo, seu trabalho e sua propriedade.”
A Conferência de Ialta promoveu o acordo para
estabelecimento das Nações Unidas, por insistência de Roosevelt. Embora tivesse
apenas alguns meses de vida, Roosevelt demonstrou determinação absoluta de
criar as Nações Unidas como um baluarte para a paz futura. Na era Trump, a nova
finança e as big techs assumiram o controle do Estado, sob o patrocínio da
Organização das Nações Desunidas.
Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital,
em 27 de agosto de 2025.
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