Por Joelmir Tavares / Valor Econômico
Para cientista política Marta Arretche, ex-presidente ficará com mobilização restrita, e Lula pode se beneficiar de ofensiva do presidente americano
A eventual prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro, que é julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe
de Estado, pode reduzir sua capacidade de mobilização num primeiro momento, mas
não tira de seu campo político força eleitoral no pleito de 2026, segundo a
avaliação da cientista política Marta Arretche.
A professora titular do Departamento de Ciência
Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole diz, em
entrevista ao Valor, que a investida do presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre o Brasil, com a
imposição do tarifaço e de sanções a autoridades, levou o bolsonarismo a uma
situação de isolamento parlamentar e pode beneficiar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem em mãos uma oportunidade
de elevar a “coesão doméstica”, como aconteceu em outros países.
Para Arretche, as razões de fundo para a crise de governabilidade do petista passam pela antecipação do embate eleitoral no Congresso e por fatores institucionais, que retiraram do Executivo ferramentas para negociar. “Os problemas que o presidente Lula vem enfrentando têm a ver com razões institucionais dos poderes da Presidência que precisam ser revistos para que qualquer presidente que venha a ser eleito consiga governar”, afirma.
A seguir os principais pontos da entrevista:
Valor: Vê algum risco à democracia brasileira
em razão da interferência do governo Donald Trump?
Arretche: Penso que não. O que o presidente Trump está
solicitando ao Brasil é algo que a maioria dos eleitores e das forças políticas
não está disposta a entregar. Não vejo atores que
concordariam em pagar o preço que ele está pedindo: que o Judiciário abra mão
do processo de responsabilização do ex-presidente Bolsonaro e dos militares
pela tentativa de golpe, que está fartamente demonstrada. Trump
parece supor que Bolsonaro e os militares que o acompanham são inocentes, e que
a condenação seria fruto de perseguição pessoal do STF, mas há muitas
demonstrações da tentativa de golpe.
Valor: Que consequências a ingerência
de Trump pode ter nas questões internas brasileiras?
Arretche: Essas intervenções do presidente Trump na
política doméstica dos países têm produzido nas democracias mais sólidas, e
acho que o Brasil é um caso desse tipo, o efeito contrário do que ele pretende.
No Canadá, a intervenção produziu uma virada histórica nas eleições. Houve um
fenômeno similar na Austrália. O modo como Trump opera tende a aumentar a
credibilidade dos candidatos que se opõem a ele, elevando a coesão doméstica e
erodindo a credibilidade dos candidatos da direita. Do ponto de vista político, Trump tem se revelado um cabo
eleitoral dos setores progressistas.
Penso que o Brasil não será muito diferente, embora
aqui ele esteja intervindo num momento em que ainda temos um ano até as
eleições. E um ano na política doméstica é uma eternidade.
Valor: E até que ponto isso pode
beneficiar eleitoralmente Lula?
Arretche: Há várias dimensões a se considerar. A
primeira é o momento em que isso está ocorrendo, ainda muito distante do
contexto eleitoral. O poder preditivo de especulações e mesmo das pesquisas se
aproxima do zero, porque é muito tempo até lá.
Até o momento anterior à investida do [deputado
federal] Eduardo Bolsonaro e do Trump, o que atores políticos
importantes do centro e da direita, como os governadores e o secretário Gilberto Kassab, indicavam era: Lula está morto
politicamente, tem preguiça de governar, está em queda eleitoral. Ele vinha
numa trajetória de queda, com o caso do Pix e o escândalo do INSS.
O episódio Eduardo Bolsonaro/Trump permitiu
estancar essa queda. E as pesquisas mais
recentes estão mostrando que o presidente Lula
obteve algum benefício: ele não apenas parou de cair, como subiu um pouquinho.
E isso será suficiente para resolver a campanha eleitoral
de 2026? Não sabemos, porque temos mais de ano pela frente. Muitos fatores
podem afetar os resultados eleitorais, a despeito do fato de que a sociedade brasileira está dividida entre posições de esquerda e
posições de direita. Esse quadro mais estrutural estará presente em 2026, mas
nada disso permite cravar o resultado.
Candidatos da direita são reféns do
bolsonarismo. Precisam dos votos deles para ter base de partida”
Valor: Uma pesquisa recente do
instituto Datafolha mostrou que, para 35% dos brasileiros, a culpa do tarifaço
é de Lula; 22% acham que é de Jair Bolsonaro, e 17%, de Eduardo Bolsonaro. Isso
pode indicar cenário diferente do de outros países?
Arretche: As pesquisas de opinião devem ser lidas com
as lentes das preferências eleitorais. Isto é, os eleitores que atribuem a
culpa do tarifaço ao Lula são dominantemente eleitores bolsonaristas, ao passo
que os eleitores que atribuem o tarifaço aos Bolsonaros são majoritariamente
eleitores petistas. Nas eleições, será muito importante a
interpretação dos eleitores que não estão engajados com nenhuma das duas
correntes.
Valor: O bolsonarismo tende a perder
ou ganhar força com a pressão de Eduardo Bolsonaro nos EUA e a possível prisão
de Bolsonaro?
Arretche: A estratégia do Eduardo Bolsonaro, operando
abertamente no exterior e buscando obter os créditos políticos de uma
estratégia contra o Brasil, do ponto de vista político é um tiro no pé do
bolsonarismo.
O bolsonarismo tem sido bem-sucedido em esticar ao
máximo a tensão política, a ponto de provocar penalidades aplicadas pelo
Judiciário. Tipicamente, os bolsonaristas tomam iniciativas e adotam ações
que, de fato, são passíveis de punição. Há abundância de fatos mostrando o quanto
o bolsonarismo é subversivo, a ponto de motivar sanções penais e sanções do
Judiciário.
O bolsonarismo tem se apresentado como vítima de
perseguição. E Bolsonaro é o mais bem-sucedido deles nesse sentido. Portanto,
há derrotas jurídicas que se convertem em vitórias políticas, pela via do
esticamento da relação com o Judiciário e vitimização diante das
punições. É de se esperar que a prisão do Bolsonaro reduza a possibilidade
de ele criar fatos que esticam a corda jurídica e levam à vitimização, porque não
vai mais poder se movimentar. O provável é que a força de mobilização do
bolsonarismo se reduza.
Valor: E na esfera parlamentar?
Arretche: A liderança de Sóstenes Cavalcante [líder
do PL na Câmara], que é uma liderança truculenta e radicalizada, tem errado
muito e está produzindo um certo isolamento do bolsonarismo na Câmara. Existe uma coalizão no Congresso hoje que junta a turma da anistia
com a turma das emendas, mas a turma das emendas oscila em dar total apoio à
liderança do PL, até porque a estratégia dela é produzir um esticamento com o
STF, como ao tentar aprovar a anistia.
O centro no Congresso se afasta do bolsonarismo na
medida em que ele percebe que o passo seguinte é produzir mais uma crise
institucional, desta vez com o STF e com a opinião pública. A ocupação do plenário [protesto de bolsonaristas no
dia 5 de agosto para pressionar o presidente Hugo Motta a pautar
a anistia, após a prisão temporária de Bolsonaro ser decretada] foi apenas um
episódio da estratégia radicalizada da liderança do PL na Câmara dos Deputados.
Valor: Como isso pode reverberar nas
chances desse campo na disputa pela Presidência?
Arretche: Os candidatos da direita são reféns do
bolsonarismo. Eles precisam dos votos dos bolsonaristas para ter uma base de
partida para desempatar, para ir para o segundo turno. E não está muito clara
qual é a estratégia do presidente Bolsonaro. A possibilidade de que ele próprio
venha a concorrer é pequena, se aproxima do zero. A não ser que ocorra uma
grande virada, o que também não seria uma novidade, dadas as grandes viradas
que nós temos vivido nos últimos anos.
As vitórias políticas que os bolsonaristas têm tido
com essas estratégias de vitimização fazem com que, para as eleições de 2026,
seja muito provável que o bolsonarismo ainda seja uma força eleitoral
importante, da qual candidatos da direita dependem. A tal ponto que todos
eles prometem uma anistia ou um indulto ao Bolsonaro, o que só permite
antecipar mais uma crise institucional provocada pelo bolsonarismo.
Uma parte do problema é uma questão
institucional de perda de força do Executivo como Poder”
Valor: Quais as razões de fundo para
essa permanente tensão entre Poderes nos últimos anos e a crise de
governabilidade de Lula?
Arretche: O debate está muito contaminado pela eleição.
A oposição diz que o problema é o Lula, o Lula diz que o problema é o
Congresso, e o Congresso diz que o problema é o Supremo.
Na verdade, é preciso sair da chave de que
o problema é entre Poderes e considerar que é entre correntes políticas que
estão antecipando as eleições de 2026. Há uma disputa em torno das eleições que
opõe correntes e suas narrativas para a opinião pública com vistas a 2026. Esse
debate obscurece problemas que são de natureza institucional.
Valor: Quais?
Arretche: A direita, os governadores de direita e parte
do centro político — por exemplo, Gilberto Kassab, que está alinhado com
candidatos da direita — dizem que o problema é o presidente Lula e, portanto, a
solução para os desafios do Brasil seria eleger um candidato da direita.
Se olharmos esse problema do ponto de vista
institucional, temos hoje um Executivo federal, que é ocupado pelo presidente
Lula e pelo PT, com muito protagonismo, muita visibilidade e sendo muito
responsabilizado pelo que acontece com o Brasil. Entretanto, o Executivo
federal hoje não tem mais o poder das emendas, não tem mais o poder de obter
apoio no Legislativo — inclusive do Centrão, com o qual ele governou nos dois
primeiros mandatos —, porque não tem recursos para isso. O poder discricionário no orçamento federal, para gastos da
Presidência, mesmo excluídas as emendas, é muito pequeno. Ele também carece de
funcionários públicos e de técnicos em escala suficiente para formular as
políticas.
Hoje os governos subnacionais, via transferências
federais e emendas, têm muito mais recursos do que tinham no passado. Então,
esses governadores que a direita apresenta como bem-sucedidos são muito
preparados ou apenas contam com recursos institucionais com os quais o
Executivo federal não conta?
A mera substituição do Lula pelo governador [de São
Paulo] Tarcísio de Freitas, por exemplo, como vendem alguns
políticos da direita, seria suficiente para resolver os nossos problemas? Ou os
problemas que o presidente Lula vem enfrentando têm a ver com razões
institucionais dos poderes da Presidência que precisam ser revistos para que
qualquer presidente que venha a ser eleito consiga governar?
Valor: Eleger Executivo e Congresso
alinhados ideologicamente não resolveria a governabilidade?
Arretche: Essa é a grande questão. Atores de direita dizem que não temos um problema que diga
respeito ao desenho das instituições, mas, sim, ausência de alinhamento entre
as preferências do Executivo e as preferências dominantes no Parlamento. E, uma
vez que se produza um alinhamento, o gênio vai voltar para dentro da garrafa e
o Congresso vai cooperar com o Executivo. Não tenho certeza disso.
Avalio que nós temos um problema institucional, em
que o Legislativo controla uma parte importante de recursos e não é
responsabilizado pelas decisões que toma, ao passo que o Executivo conta com
poucos recursos e é muito responsabilizado.
Neste momento, a estratégia do Centrão e da direita
é tentar inviabilizar o governo, porque, se o governo conseguir levar as suas
ações adiante, isso recuperaria o presidente Lula e o tornaria competitivo para
as eleições de 2026. A
questão é se o Centrão no Legislativo, na hipótese de uma eventual eleição do
governador Tarcísio [como presidente], cooperaria na aprovação e arcaria com os
custos políticos de uma agenda de controle de gastos e de cortes, redução do
déficit, imposição de custos. Porque esse presidente não teria instrumentos
políticos para obter o apoio do Legislativo para uma agenda impopular.
Além disso, a nossa dinâmica política faz com que
quem perde no conflito entre o Executivo e o Legislativo recorra ao Judiciário.
O STF se tornou também parte do conflito partidário. Ao desempatar esses conflitos, ele é visto como partidarizado por
quem perde ou quem ganha. As disputas, que são todas urgentes e de altíssima
temperatura, têm obscurecido a dimensão institucional.
Na seara política, cada ator vai dizer: “É
suficiente que você me eleja para que o problema seja resolvido”. Não é bem
assim. Se uma parte do problema que nós estamos enfrentando hoje é uma questão
institucional de enfraquecimento do Executivo federal como Poder, a direita
está vendendo uma ilusão.
Valor: Qual o significado de uma
eventual prisão de Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado?
Arretche: A possível prisão dele não se
resume a ele, é a prisão de setores de elite do Exército. Nós
estamos vivendo uma situação inédita. O Exército brasileiro sempre foi muito
politizado, sempre participou da vida política do país, participou
sistematicamente de tentativas de golpe em favor de uma parte dos civis. E a
democracia brasileira sobreviveu quando das situações em que o Exército se
dividiu.
Na história brasileira e mundial de militares que
foram anistiados ou não foram punidos, não é raro que eles voltem uma segunda
vez se organizando melhor para o golpe. Portanto, não é apenas o
Bolsonaro que está no banco dos réus, mas uma parte importante da elite do
Exército. É a primeira vez que líderes militares de alta patente vão para o
banco dos réus e são filmados, são constrangidos, a ponto de declararem que
tudo aquilo não passou de um pensamento digitalizado. Se ocorrer,
será a primeira vez que militares golpistas, inclusive da cúpula do Exército,
como os generais Heleno e Braga Netto, serão condenados. Isso não é trivial do ponto
de vista da história brasileira.
Valor: A senhora acredita que o
julgamento terá punições de fato ou vê chance de anistia, indulto ou
conciliação num futuro breve?
Arretche: Com base no que os atores dizem hoje, nós
diríamos que os réus serão punidos. Se recuarmos na história brasileira, vamos
ver que momentos de altíssima tensão, em que a corda foi esticada ao máximo,
resultaram em alguma forma de acordo. É prudente analisar os fatos com cuidado
e não fazer previsões.
Valor: Diante de pesquisas que mostram
perda de credibilidade do STF, crê que ele tenha força institucional para
concluir esse processo?
Arretche: Tudo indica que o Supremo emitirá uma
decisão. É muito provável que essa decisão seja na direção da condenação,
porque as evidências, as provas e a documentação são fartas. Mas o custo
político dessa decisão é muito alto para o Supremo.
O Supremo vem acumulando déficits de credibilidade
por outros caminhos, não só por esse. Há muito questionamento sobre a conduta
de ministros, sobre o modo como o Supremo toma decisões. Acredito que, uma vez
que esse processo de punição dos Bolsonaro e dos militares golpistas seja
concluído, vai se iniciar uma discussão muito profunda sobre o papel do Supremo
no sistema político brasileiro. Seria recomendável que, em prol de um funcionamento
mais adequado do sistema, o Supremo encontrasse formas de autocontenção.
O Supremo, na prática, está sendo a principal força
de contenção do bolsonarismo, da extrema direita e da ameaça que ela representa
para o Estado de Direito no Brasil. Mas mesmo aqueles que veem o
bolsonarismo como uma ameaça ao Estado de Direito também são críticos a um
conjunto de atuações, de comportamentos e de modos de decisão do Supremo. A
tendência é que o próximo ponto da agenda seja uma reforma do Supremo, e já há
discussões nessa direção.
Valor: A troca de Luís Roberto Barroso
por Edson Fachin na presidência do STF pode influenciar?
Arretche: As declarações do ministro Fachin levam a esperar uma agenda mais próxima da adotada pela ministra Rosa Weber, que fez uma presidência voltada à autocontenção do Supremo. Existem tendências nessa direção e elas seriam importantes.
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