sábado, 23 de agosto de 2025

O espólio do bolsonarismo, por Cláudio Couto

A posição de líder da extrema-direita está em aberto e o clã Bolsonaro, desesperado, sabe disso

É comum que se faça referência à ultradireita brasileira inteira como sendo “o” bolsonarismo. Este, contudo, é só parte dela. ­Pense-se, por exemplo, no MBL, que, embora por vezes se articule com o movimento político do ex-presidente, frequentemente atrita com ele, inclusive porque, exatamente por também integrar a direita extremista, disputa apoio social e votos com o bolsonarismo.

A confusão se dá por alguns motivos. Primeiro, porque hoje o bolsonarismo hegemoniza a ultradireita, ofuscando os demais segmentos e se tornando o mais visível deles nesse lado do espectro ­político-ideológico. Ter o bolsonarismo como sendo toda a ultradireita é tomar a parte pelo todo, equívoco similar ao de achar que tudo que está à esquerda é petista.

O segundo motivo é o sucesso do bolsonarismo em ocupar um espaço eleitoral para o qual, ao menos desde 2013, havia demanda social, que, contudo, nenhum ator político-partidário conseguia atender satisfatoriamente. As malfadadas jornadas de junho deflagraram, e a Operação Lava Jato aprofundou, um forte sentimento antipolítico que se disseminou pela sociedade brasileira. Seus primeiros efeitos eleitorais foram em 2016, nas disputas municipais, quando autênticos ou pretensos outsiders de discurso antipolítico conquistaram prefeituras em municípios importantes, tais como São Paulo, Belo Horizonte e Betim.

Em 2018, o humor social já não era só antipolítico, mas também antissistema. Nesse contexto, nenhum candidato presidencial se sairia melhor do que Jair Bolsonaro, cujo physique du rôle era perfeito para a função. Como disse Victor Hugo, nada mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou.

O quadriênio bolsonarista no governo federal não foi o ápice da ultradireita, mas seu instrumento de consolidação, aprofundando a radicalização de parcela significativa da sociedade brasileira, exacerbando a polarização político-ideológica e propiciando novas lideranças extremistas. Agora, com a inelegibilidade de Jair Bolsonaro e seu virtual encarceramento, as contradições e divisões internas da direita radical têm, no entanto, espaço para aflorar.

Uma dessas contradições advém do forte familismo do projeto político bolsonarista, o qual explicita, inclusive, o porquê de Bolsonaro ter sido um político marginal, mas não um outsider. Apesar de sua trajetória de lobo solitário, que os ­norte-americanos denominariam maverick, Jair construiu sólido empreendimento político familiar, guindando todos os filhos a cargos eletivos, tendo antes, ademais, conseguido também eleger a esposa da época.

O ocaso de Bolsonaro e a situação complicada dos familiares deflagraram a ­disputa pelo espólio. Eduardo, o mais talhado para substituir o pai em 2026, abraçou a tática camicase de ir para os EUA e, de lá, extorquir o próprio País na tentativa de livrar das garras da Justiça o patriarca e outros golpistas. Carlos, o filho alucinado, investigado no inquérito das milícias digitais por capitanear o gabinete do ódio, não reúne capacidades necessárias para tal papel, inclusive psíquicas. Flávio, o menos histriônico dos irmãos, cujo extremismo se camufla sob a fleuma do pragmatismo, é desprovido de carisma e de credenciais administrativas (como as de Tarcísio ou Caiado), além de correr o risco de ver exumado o inquérito das rachadinhas, hoje sepultado por decisão monocrática de Gilmar Mendes. Michelle, que goza de carisma, capacidade de comunicação e popularidade, não tem a confiança dos próprios filhos nem sequer do marido para assumir tal lugar. Assim, o bolsonarismo propriamente dito fica acéfalo na disputa nacional de 2026, abrindo espaço para lideranças alternativas.

Cientes da situação e desesperados, os mais estridentes do clã vociferam contra aliados que postulem substituir o patriarca ou familiares na disputa presidencial e, a depender do resultado, na liderança da ultradireita pelos próximos anos. O clã desconfia da lealdade dos correligionários, percebendo-os como oportunistas, preocupados em não ser vetados pelo ex-presidente e, quem sabe, contar com seu beneplácito. A falta de um partido estruturado e orgânico do bolsonarismo, cujas lideranças estão espalhadas por diversas agremiações, fragiliza os nexos de lealdade para com o líder. Situação bem distinta daquela de Lula dentro do PT, mesmo preso e sem direitos políticos. O bolsonarismo é um movimento, não uma organização partidária. Com isso, se por um lado desfruta da flexibilidade que amarras partidárias restringem, por outro carece da força institucional que só partidos coesos têm. 

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Nenhum comentário: