Iluminados pelo espoucar dos fogos comemorativos à vitória de Dilma Rousseff no pleito eleitoral à presidência da República, brasileiros e brasileiras não têm, contudo, razões para festejar o atual cenário político de seu país. Fatos e queixumes expõem às claras a barbárie e a fortíssima intensificação da descrença de todo um povo na virtude do homem público, bem como na adequação funcional das instituições quanto ao seu papel (1) de garante do Estado Democrático de Direito e (2) de promotor dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como a erradicação da pobreza.
Deveras, nunca se viu, num curto espaço de tempo, tantos casos de corrupção envolvendo e assolando os Poderes da República. Alguns “mestres do pensamento” diriam que vivemos numa “democracia a frio” em razão da ausência de um dever ético fundamental: a responsabilidade do homem público pelos seres humanos em estado de desespero (1) pelas profundas privações dos serviços de saneamento básico, saúde, educação etc., e/ou (2) pela insuficiência de renda (sabe-se que há, em todo mundo, cerca de 1,3 bilhões de pessoas subsistindo com renda abaixo de um dólar por dia).
Deixando-nos levar pelas idéias que Amartya Sen (ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1999) empreendeu no quarto capítulo de sua obra “Desenvolvimento como liberdade” (Companhia das Letras, 2000), há de se ter em conta que a pobreza não é apenas identificada com a escassez de renda (critério tradicional de identificação), pois, ainda que isso possa ser a razão principal da privação das potencialidades de uma pessoa, de nada valerá o critério de renda monetária se, por exemplo, os índices de nutrição, saúde e educação de uma determinada localidade não forem suficientemente altos para assegurar existência digna a todos os seus membros.
Neste sentido, tomando o serviço de saneamento básico como paradigma, e sendo certo que a sua falta repercute negativamente tanto na saúde quanto na educação de uma pessoa (morte pré-natal e na infância, infecções parasitárias com impacto na inteligência das pessoas, falta na escola etc.), como poderemos supor que não sejam pobres aqueles que vivem numa localidade sem rede de esgoto, apesar de auferirem renda igual ou superior ao patamar previamente estabelecido como parâmetro de pobreza? Segundo Sen, estas pessoas estão privadas das “capacidades básicas” e, consequentemente, do seu potencial produtivo (“capital humano”), a partir do qual as mesmas teriam maiores chances de superar a penúria (ampliação das oportunidades) e de conquistar a liberdade (autonomia).
Destarte, pobre é também aquele que tem renda superior à “linha de pobreza”, mas que, todavia, não pode convertê-la em vida decente em razão da carência das capacidades elementares, como um vaso sanitário e um sistema de saneamento. Eis a situação da “metade do Brasil”, diz o renomado professor José Eli da Veiga (FEA/USP) no Valor Econômico de 21/09/10, reportando-se aos 41% dos domicílios brasileiros sem saneamento básico em 2009, o que não deixa de ser impressionante pelas altas densidades de habitantes que os mesmos encerram. Não sem razão se diz que o Brasil é o “país das oportunidades perdidas”, numa clara alusão à incapacidade de planejamento e de execução de políticas sociais aptas a solucionar os problemas decorrentes do crescimento desordenado das grandes cidades.
À luz do que se deixou dito, resulta inegável que o Estado e a política têm papéis de alta relevância no que toca à pobreza. Com efeito, não será através de um governo fraco – incapaz de fazer cumprir políticas públicas e leis de forma limpa e transparente (Francis Fukuyama) – que o perfil de uma população será melhorado, porquanto este governo será fonte de sérios problemas, como a corrupção e a criminalidade organizada, por meio dos quais o dinheiro público será desviado dos investimentos em áreas indispensáveis à formação do capital humano, como a educação, a saúde, a nutrição, entre outras. Não por acaso se diz que a pobreza deve ser apreendida “como um fenômeno de natureza política que traduz uma carência de relações de solidariedade e consequentemente de integração política” (Pierre de Senarclens).
Mas, em que pese tamanha barbárie, será que a escolha pelo caminho da “ausência de responsabilidade pelo outro” constitui um padrão comportamental empiricamente imutável na política brasileira? Será que não há por aqui um só político com capacidade de indignar-se diante de uma criança faminta buscando migalhas de alimentos sobre montes de lixo?
Muitas pessoas dirão que a falta de ética na política é algo inevitável porque todos os políticos pensam apenas nos seus interesses particulares, agindo, pois, com total indiferença e cinismo ao que se passa “extra muros” de suas cidadelas. Todavia, pensamos que a resposta seja negativa. Jamais deixaremos de confiar na capacidade que todos temos para provocar mudanças positivas na vida de outras pessoas. Ainda que no plano fático esteja comprovada a falibilidade humana (sobretudo quando da tomada do poder), estamos convencidos de que vale a pena acreditar na política, pois, afinal, o que está em jogo é suficientemente importante para justificar a nossa crença: o bem-estar de todos.
Marco Aurélio Borges de Paula, advogado e consultor jurídico. Doutorando em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade de Salamanca (Espanha); Mestre em Direito Público da Economia e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Empresarial, ambos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos de Mato Grosso do Sul – CEPEJUS (www.cepejus.com.br).
Deveras, nunca se viu, num curto espaço de tempo, tantos casos de corrupção envolvendo e assolando os Poderes da República. Alguns “mestres do pensamento” diriam que vivemos numa “democracia a frio” em razão da ausência de um dever ético fundamental: a responsabilidade do homem público pelos seres humanos em estado de desespero (1) pelas profundas privações dos serviços de saneamento básico, saúde, educação etc., e/ou (2) pela insuficiência de renda (sabe-se que há, em todo mundo, cerca de 1,3 bilhões de pessoas subsistindo com renda abaixo de um dólar por dia).
Deixando-nos levar pelas idéias que Amartya Sen (ganhador do prêmio Nobel de Economia em 1999) empreendeu no quarto capítulo de sua obra “Desenvolvimento como liberdade” (Companhia das Letras, 2000), há de se ter em conta que a pobreza não é apenas identificada com a escassez de renda (critério tradicional de identificação), pois, ainda que isso possa ser a razão principal da privação das potencialidades de uma pessoa, de nada valerá o critério de renda monetária se, por exemplo, os índices de nutrição, saúde e educação de uma determinada localidade não forem suficientemente altos para assegurar existência digna a todos os seus membros.
Neste sentido, tomando o serviço de saneamento básico como paradigma, e sendo certo que a sua falta repercute negativamente tanto na saúde quanto na educação de uma pessoa (morte pré-natal e na infância, infecções parasitárias com impacto na inteligência das pessoas, falta na escola etc.), como poderemos supor que não sejam pobres aqueles que vivem numa localidade sem rede de esgoto, apesar de auferirem renda igual ou superior ao patamar previamente estabelecido como parâmetro de pobreza? Segundo Sen, estas pessoas estão privadas das “capacidades básicas” e, consequentemente, do seu potencial produtivo (“capital humano”), a partir do qual as mesmas teriam maiores chances de superar a penúria (ampliação das oportunidades) e de conquistar a liberdade (autonomia).
Destarte, pobre é também aquele que tem renda superior à “linha de pobreza”, mas que, todavia, não pode convertê-la em vida decente em razão da carência das capacidades elementares, como um vaso sanitário e um sistema de saneamento. Eis a situação da “metade do Brasil”, diz o renomado professor José Eli da Veiga (FEA/USP) no Valor Econômico de 21/09/10, reportando-se aos 41% dos domicílios brasileiros sem saneamento básico em 2009, o que não deixa de ser impressionante pelas altas densidades de habitantes que os mesmos encerram. Não sem razão se diz que o Brasil é o “país das oportunidades perdidas”, numa clara alusão à incapacidade de planejamento e de execução de políticas sociais aptas a solucionar os problemas decorrentes do crescimento desordenado das grandes cidades.
À luz do que se deixou dito, resulta inegável que o Estado e a política têm papéis de alta relevância no que toca à pobreza. Com efeito, não será através de um governo fraco – incapaz de fazer cumprir políticas públicas e leis de forma limpa e transparente (Francis Fukuyama) – que o perfil de uma população será melhorado, porquanto este governo será fonte de sérios problemas, como a corrupção e a criminalidade organizada, por meio dos quais o dinheiro público será desviado dos investimentos em áreas indispensáveis à formação do capital humano, como a educação, a saúde, a nutrição, entre outras. Não por acaso se diz que a pobreza deve ser apreendida “como um fenômeno de natureza política que traduz uma carência de relações de solidariedade e consequentemente de integração política” (Pierre de Senarclens).
Mas, em que pese tamanha barbárie, será que a escolha pelo caminho da “ausência de responsabilidade pelo outro” constitui um padrão comportamental empiricamente imutável na política brasileira? Será que não há por aqui um só político com capacidade de indignar-se diante de uma criança faminta buscando migalhas de alimentos sobre montes de lixo?
Muitas pessoas dirão que a falta de ética na política é algo inevitável porque todos os políticos pensam apenas nos seus interesses particulares, agindo, pois, com total indiferença e cinismo ao que se passa “extra muros” de suas cidadelas. Todavia, pensamos que a resposta seja negativa. Jamais deixaremos de confiar na capacidade que todos temos para provocar mudanças positivas na vida de outras pessoas. Ainda que no plano fático esteja comprovada a falibilidade humana (sobretudo quando da tomada do poder), estamos convencidos de que vale a pena acreditar na política, pois, afinal, o que está em jogo é suficientemente importante para justificar a nossa crença: o bem-estar de todos.
Marco Aurélio Borges de Paula, advogado e consultor jurídico. Doutorando em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade de Salamanca (Espanha); Mestre em Direito Público da Economia e pós-graduado em Direito Penal Econômico e Empresarial, ambos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos de Mato Grosso do Sul – CEPEJUS (www.cepejus.com.br).
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