História é o que não falta nas velhas calçadas de Montmartre, o pitoresco bairro parisiense. Antigo bastião da Comuna de Paris –na parte alta da localidade existe um museu em homenagem aos insurretos de 1871-, Montmartre é ainda uma espécie de território livre das artes. Ali morou Pablo Picasso e também Amadeo Modigliani fixou residência por algum tempo no bairro. Mas quem realmente encarnou como ninguém a alma boêmia de Montmartre foi Utrillo, Maurice Utrillo. Conforme ele mesmo diria em uma carta, a originalidade maior de Montmartre consistia em sua independência.
E independente o próprio Utrillo o seria até o fim. Filho da também pintora e modelo Suzanne Valadon, Utrillo não se ligaria a nenhuma tendência artística do seu tempo, então dominado pelo fovismo e pelo cubismo. Palmilhou um caminho próprio, retratando quase sempre um tema único: Montmartre, justamente. Soube ser universal a partir de um bairro, senão de umas poucas ruas. A sua imaginação bastava. O verdadeiro artista é assim, talvez.
Esse pintor de Paris, paradoxalmente, tem quase toda a sua obra exposta em Londres ou Nova York (nessa última cidade está a tela Le Lapin Agile, que retrata o célebre cabaré parisiense, freqüentado pelos pintores Toulouse-Lautrec e Degas e pelo poeta Apollinaire). Em Paris mesmo não há muito que admirar de Utrillo. Mas a sua Montmartre lá está ainda, praticamente intacta, desafiadoramente intacta.
Há algumas décadas, morei em Montmartre. A minha rua era na verdade uma interminável escadaria divida em vários lances e eu morava exatamente no meio dela. A escadaria conduzia à pitoresca Place de Tertre, reduto dos pintores domingueiros, no coração de Montmartre.
Residia eu em um pequeno beco, chamado Passage Cottin. Parece que Monsieur Cotttin foi um antigo - e importante - proprietário de imóveis no bairro. Não importa tanto. O relevante é que Utrillo pintou a Passage Cottin. Retratou o beco com a escadaria ao fundo, o meu prédio de três andares, a pequena janela lateral. A tela se intitulava justamente Passage Cottin e transmitia uma infinita sensação de silêncio e paz. Minha filha Moema nasceu praticamente ali naquele beco, naquela Passage Cottin. Eu diria que ela captou toda a serenidade estampada no quadro de Utrillo.
Guardião da minha memória, o quadro de Utrillo nada me deixa esquecer. Com ele, divido para sempre um pedaço da minha própria história.
Ivan Alves Filho é historiador, jornalista e membro da direção nacional do PPS
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