Quando em 1988, o Brasil cumpriu com a Constituição um primeiro estágio de construção da democracia. Mesmo que isto tenha ocorrido por meio de um processo de transição sem rupturas com o regime autoritário anterior, o primeiro passo para a democratização ocorreu com a universalização dos direitos políticos, com o início de um processo de reconhecimento dos direitos sociais e com o reconhecimento da publicidade como um dos marcos normativos do Estado e da administração pública.
O processo de transição, desde então, desencadeou uma série de transformações na política brasileira. Em primeiro lugar, iniciou um processo de consolidação das regras democráticas, estabelecendo as eleições como ritual político para a definição das autoridades tanto no plano do Poder Legislativo, quanto no plano do Poder Executivo. Não há, hoje, espaço para golpes e viradas de mesa. Em segundo lugar, a política brasileira passou a conviver cada vez mais com a expansão e a institucionalização da participação da sociedade civil. Por meio de conselhos gestores, conferências, orçamentos participativos e por novos repertórios de ação dos movimentos sociais, a sociedade civil tem influenciado e colaborado com a gestão da coisa pública, aproximando Estado e sociedade. Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, a transição para a democracia tem modificado o perfil da elite política, inserindo novos grupos e temas no processo da representação.
Passados quase 24 anos da Constituição de 1988, podemos dizer que existe uma consolidação das regras eleitorais e um processo de mudança ainda em curso e que tem impactado a organização das instituições do sistema político. Ao reconhecer a publicidade como um dos seus princípios fundamentais, a Constituição de 1988 erigiu um processo de mudança marcado por conjunturas críticas ditadas pela corrupção. Desde 1988 a sociedade brasileira tem convivido com escândalos de corrupção em sequência, promovendo mudanças tanto no sistema político quanto na administração.
A ideia de corrupção está ligada à ideia de degeneração, putrefação ou destruição. No caso da política, trata da degeneração ou apodrecimento das instituições. Para Aristóteles, escrevendo sobre o assunto no século IV a.C., a corrupção representaria um processo de degeneração das instituições. Mas, por outro lado, segundo estagirita, ela coloca em movimento a ordem política. Nesse sentido, ela representa uma potência na ordem política, porquanto a coloca em movimento, no sentido de sua transformação.
A sequência de escândalos de corrupção tem colocado a ordem política brasileira em movimento, especialmente no que tange ao desenvolvimento das instituições de controle. Todas estas conjunturas críticas que desencadearam processos de desenvolvimento institucional do controle no Brasil têm sido marcadas pela presença de um escândalo de corrupção. A primeira delas foi o impeachment do presidente Collor de Melo. Naquela ocasião, o impeachment de Collor representou um momento para desencadear uma agenda de reforma política. Em sequência, o escândalo do Orçamento da União possibilitou a mudança do regimento do Tribunal de Contas da União, o aprimorando para o exercício do controle das contas públicas. A criação da Controladoria Geral da União e a maior autonomia investigativa da Polícia Federal também vieram na esteira da permanência da corrupção no discurso político. Iniciamos, assim, uma corrida do cachorro atrás do próprio rabo.
Nesse contexto, a transformação das instituições de controle é inegável. O papel delas na construção da publicidade e da transparência coloca o Brasil na vanguarda de uma parte muito importante da gestão pública. Mas de todos os escândalos de corrupção que nos assolaram desde 1988, o mensalão representa um outro tipo de conjuntura crítica, que não necessariamente está relacionada ao desenvolvimento das instituições de controle, mas ao desenvolvimento dos valores democráticos.
O mensalão, dentre todos os escândalos que surgiram no Brasil, tem um apelo de valores. Não porque se diferencie substancialmente de outros escândalos, mas por ter colocado o tema da ética pública no interior do debate e pelo momento no qual estamos. Da conjuntura do mensalão não resultará novos desenvolvimentos institucionais e nem sobreposição de outras instituições. Restará um debate ainda em aberto a respeito dos valores que devem pautar a gestão da República.
O julgamento no Supremo Tribunal Federal encerrará um ciclo em que as instituições de controle passaram a funcionar a contento, mas ainda não avançamos no que respeita aos valores republicanos. A mídia denunciou o mensalão, a Polícia Federal apurou e investigou o papel dos envolvidos, a Procuradoria Geral da União denunciou os acusados e, agora, o Supremo julgará tal escândalo. Será uma encruzilhada histórica que deixará marcas, para o bem ou para o mal, no Brasil. Independentemente de qual juízo seja feito no Supremo, o mensalão deixará marcas profundas na construção ética da República. Por isso corremos ainda atrás do próprio rabo. Para além das instituições, necessitamos de uma cultura democrática. Apenas no entrelaçamento das instituições com uma cultura política democrática é que será possível superar esta conjuntura crítica e andarmos para frente.
O estágio de desenvolvimento da democracia brasileira faz com que hoje tenhamos uma cultura política ambivalente em relação ao interesse público. Mas a ambivalência desta cultura política, em que o cidadão comum denuncia a corrupção praticada pelos políticos sem olhar para o modo como ele próprio trata a coisa pública, pode avançar para valores virtuosos ou degenerar para a mais mesquinha corrupção dos valores. Se houve avanço no que tange ao desenvolvimento das instituições, será que elas sobreviverão sem o alicerce de uma ética pública sólida? Com a palavra, o Supremo.
Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (Crip).
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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