segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Inflação corrói renda de 70% dos trabalhadores

Alta de preços de produtos essenciais, como alimentos, prejudica os mais pobres

Cássia Almeida* / O Globo

RIO - A inflação está deixando o mercado de trabalho cada vez mais desigual: 70% dos trabalhadores ganham hoje menos do que recebiam em 2019, antes da pandemia. E o peso da alta de preços na desigualdade, que tem sido recorde nos últimos tempos, triplicou desde o terceiro trimestre do ano passado.

Essas são as conclusões de um cruzamento de dados inédito feito pelo economista Daniel Duque, da Fundação Getulio Vargas (FGV), ao medir o efeito da inflação na massa de trabalhadores.

— Os mais ricos consomem mais serviços e menos alimentos e acabam tendo uma inflação menor. Infelizmente, a tendência é só piorar com a aceleração da inflação, com grande perda de consumo das camadas mais vulneráveis — prevê o economista.

Ele fez os cálculos com o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, a inflação oficial) de junho, que ainda estava em 8,35%, considerando o acumulado em 12 meses. Hoje, está em 10,25%.

Portanto, os efeitos devem ficar mais intensos com o avanço dos preços. O IBGE mostrou que o rendimento do trabalho teve queda histórica de 10,2% em agosto.

A conta de Duque é baseada no redimento do trabalho domicilar per capita, ou seja, dividido pelo número de pessoas da família. Os 30% que conseguiram chegar a 2021 ganhando mais que há dois anos pertencem ao topo da pirâmide social.

Quanto mais perto da ponta, maior o ganho. Entre os 10% mais ricos, o ganho real chegou a 8%. Já entre os que estão nas camadas médias de renda, na faixa entre os 30% e 40% mais pobres, o recuo chegou a 28%.

Duque lembra que a inflação mais alta no terceiro trimestre deste ano fez a situação ficar ainda mais dramática, sem contar os que ficarão sem qualquer transferência do governo, com o fim do auxílio emergencial. O benefício deixou de ser pago no mês passado. O Auxílio Brasil, o substituto do Bolsa Família, não será distribuído a milhões que estavam recebendo o auxílio emergencial:

— Certamente o poder de compra pós-auxílio teve forte queda, não só pela inflação ser pior para os mais pobres. Houve redução nominal nas transferências (frente ao ano passado, quando o auxílio emergencial era de R$ 600).

Outros números corroboram o efeito danoso da inflação na vida dos trabalhadores. Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores, constatou que o Índice de Miséria, que une inflação e desemprego, bateu recorde em agosto, chegando a 23,51, o maior nível desde 2012, início da série.

— A inflação está muito concentrada em itens essenciais, alimentos, combustíveis, energia elétrica. E depois de uma perda de 12 milhões de empregos, ainda estamos com 5 milhões a menos que antes da pandemia. Estamos vendo uma recuperação, mas a qualidade do emprego que está voltando é pior que antes da pandemia — diz o economista.

No início da pandemia, a pedagoga Raiane Sá viu seu salário de professora de História e Português cair quase 40%. Perdeu mil reais do salário de R$ 2.600. Deu uma guinada na carreira. Investiu em um salão de beleza no quintal de casa e consegue ganhar R$ 2.800 agora. Mas a inflação já comeu parte desse aparente ganho de renda. Levou 4,3% do seu poder de compra.

— Eu amo lecionar, mas na escola a gente trabalha muito mais, levamos trabalho para casa. Aqui no meu espaço, na hora que eu fecho o meu salão, acabou e vou descansar. E está sendo dentro de casa, eu não preciso mais pagar ninguém para ficar com as minhas duas filhas enquanto vou trabalhar.

Desemprego alto

Para Imaizumi, as perspectivas para o ano que vem não são as mais favoráveis para o emprego e a renda. Crise hídrica, sanitária, fiscal, política, falta até fertilizante. Tudo isso, segundo ele, impedirá uma queda mais forte da taxa de desemprego.

Em 2020, ficou em 13,5% na média do ano. Cairá para 13,2% se forem confirmadas as previsões da LCA. E, em 2022, para 12,5%, o que ainda representará mais de 12 milhões de desempregados.

Mesmo os que mantiveram o emprego com carteira assinada na pandemia não conseguiram proteger o salário da inflação. Quando as taxas estão altas, a negociação para reposição fica mais difícil nos acordos e convenções coletivas.

Segundo o Salariômetro, da USP, coordenado pelo professor Helio Zylberstajn, os reajustes ficaram 1,9 ponto percentual abaixo do INPC dos últimos 12 meses, em setembro. Foi a maior perda no intervalo de um ano. Em nenhum mês desde outubro do ano passado, houve ganho real de renda. Alternaram-se estabilidade ou perda.

— É a combinação de duas coisas ruins do ponto de vista do trabalhador. Com inflação alta é muito difícil repor. Quando está em 2%, 3% é mais fácil, mesmo que a economia não esteja lá essas coisas. Mas qual empresa pode dar 10% de aumento na sua folha?

O outro ponto é a taxa de desocupação muito alta que tira poder de barganha dos trabalhadores, diz o professor da USP.

— Os sindicatos não têm força para negociar reajustes maiores. O resultado é esse que 67% das negociações não recompuseram a inflação.

Se a inflação não tivesse disparado neste ano, o trabalhador poderia ter visto alguma recuperação salarial. Pelas contas de Duque, o rendimento efetivo teria subido 1,1% em agosto, se o IPCA fosse o mesmo de dezembro de 2020, quando o índice anual ficou em 3,8%.

Desigualdade estrutural

Para o pesquisador, o novo programa Auxílio Brasil tem um desenho pior que o do Bolsa Família, centralizando as decisões no governo federal, com previsão de bônus para participantes de olimpíadas que “não fazem muito sentido num programa de combate à pobreza”.

Outro problema é a fonte de custeio do programa. O governo não tem certa a receita para prosseguir com o auxílio no ano que vem, se a proposta de emenda constitucional (PEC) dos Precatórios não passar no Congresso. O projeto adia o pagamento das dívidas judiciais contra a União, abrindo espaço no Orçamento para o novo programa.

A PEC foi aprovada em comissão especial na Câmara dos Deputados, mas enfrenta resistência para ser apreciada em plenário. Um dos empecilhos é a inclusão no seu texto da mudança no cálculo do teto de gastos, que aumentaria ainda mais o espaço fiscal. Na prática, o limite para o crescimento das despesas, vinculado à inflação, será flexibilizado.

O economista diz que, quando o mercado de trabalho entrar na normalidade, haverá “uma desigualdade estruturalmente maior em relação ao período pré-pandemia”.

*Colaborou Julia Noia

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