Eu & / Valor Econômico
É preciso colocar o diálogo político a
serviço de boas ideias e dos melhores compromissos entre posições diferentes
O principal problema institucional
brasileiro pode ser definido hoje, sinteticamente, pela palavra fragmentação, e
sua solução passa pela ideia de coordenação. O sistema político tornou-se muito
mais fragmentado do que já era e a capacidade de o presidente eleito governar
depende muito mais de acordos e divisão de poder do que previa o presidencialismo
de coalizão derivado da Constituição de 1988. Não obstante, é possível
encontrar caminhos integradores entre os atores no curto prazo, embora seja
muito difícil voltar, pelo menos no curto prazo, ao modelo que vigorou nas
presidências anteriores de FHC e Lula. Entre o mundo ideal e as críticas à
situação vigente, talvez haja um meio termo mais efetivo e menos romântico.
O modelo político brasileiro construído ao longo da redemocratização combinava ampla divisão de poderes com grande capacidade de comandar o processo político nas mãos do presidente da República e da União. De um lado, estava o aspecto consorciativo, com um sistema multipartidário, maior autonomia e salvaguardas federativas aos governos subnacionais, um reforço inédito de poder aos órgãos de controle e um Congresso bicameral capaz de exigir que só se poderia governar por coalizão, seja pela ausência de maioria parlamentar, seja pela necessidade constante de se aprovar reformas constitucionais ou, ainda, pela capacidade de pressionar o Executivo por meio de CPIs e, no limite, processos de impeachment.
É verdade que, do outro lado, havia fortes
instrumentos majoritários nas mãos do Executivo federal. Entre esses
mecanismos, estavam um conjunto grande de cargos comissionados de livre nomeação;
um amplo poder de contingenciar e liberar recursos federais, inclusive de
emendas parlamentares; poderes legislativos que permitiam pautar e determinar
de forma eficaz o ritmo da aprovação de leis, com destaque para as Medidas
Provisórias e para a dificuldade de acelerar a votação de vetos presidenciais;
maior capacidade burocrática e recursos para induzir os governos subnacionais
(sobretudo os municípios) a cooperarem com projetos comandados por Brasília. A
agenda do país era predominantemente construída pelo presidente da República.
Um duplo processo alterou esse modelo
político. Primeiro, de uma forma incremental, os demais poderes foram ganhando
autonomia, com destaque para os órgãos de controle, e reformas para limitar o
Executivo federal começaram a ser feitas desde os anos 2000. Mas a partir do
governo Dilma, e com aceleração nos governos Temer e Bolsonaro, a transformação
ganhou maior tração. O resultado disso, hoje, é um presidencialismo de coalizão
diferente do original, num cenário em que predominam cinco elementos. Primeiro,
a Câmara Federal e o Supremo Tribunal Federal ganharam maior centralidade,
tornando-se impossível governar sem fazer pactos horizontais com ambos.
Há um atenuante em relação ao poder da
Câmara Federal: o Senado tem constantemente regulado o poder da Casa vizinha,
seja aliando-se ao Executivo federal, seja se tornando um contrapeso das
grandes lideranças regionais frente aos interesses mais paroquiais dos
deputados, ou então fazendo alianças com setores sociais e/ou federativos.
Decerto que por vezes agem conjuntamente, porém, essa autonomia senatorial tem
a prerrogativa de contrabalançar e dividir ainda mais o jogo governativo.
Assim, soma-se mais um elemento de fragmentação do presidencialismo de
coalizão.
Mais recentemente, uma segunda mudança
gerou uma nova divisão no presidencialismo: foi criado um Banco Central
autônomo, o que fraturou o poder de política econômica concentrado no Poder
Executivo. Muitos podem ver aspectos positivos nesta mudança, só que, de todo
modo, há aqui mais um campo de negociação e diálogo pelos quais o governo tem
de passar se quiser governar.
Também houve, em terceiro lugar, uma
redução do federalismo cooperativo erigido desde a Constituição de 1988. A
União exercia uma coordenação federativa derivada da necessidade de estados e,
especialmente, municípios terem o apoio federal para poderem exercer melhor
suas funções. Não por acaso, o modelo de confronto e repasse de
responsabilidades que imperou na era Bolsonaro teve um enorme impacto negativo
sobre os governos subnacionais, aumentando a desigualdade territorial.
Da experiência traumática durante o
bolsonarismo resultou uma combinação de duas demandas: os governos estaduais e
locais querem hoje o retorno da cooperação e da coordenação federativas, mas
num modelo em que haja maior autonomia e participação dos entes federativos em
todo o processo decisório, pois também temem o centralismo.
Uma quarta mudança é paradoxal: apesar da
redução do número de partidos no Congresso por conta dos efeitos da reforma
eleitoral de 2017, aumentou a pulverização político-partidária. Isso se deve
tanto à ausência de uma sigla hegemônica de centro, como fora o PMDB por mais
de 20 anos, como também em razão de existir hoje uma maior divisão dentro dos
partidos. O controle partidário está complexo neste momento e isso obriga o
Executivo a negociar com mais atores e ter menos segurança em relação ao
tamanho do apoio que terá.
Não só os outros atores ganharam mais
poder, mas o governo federal já não tem o mesmo poder de antes. Essa é a
transformação que coroa todo o processo. Seu poderio de agenda no campo
legislativo reduziu-se, bem como sua força no campo orçamentário. Como também
precisa dividir muito mais o governo para ter apoio parlamentar num Congresso
pulverizado, será mais difícil coordenar as ações administrativas. O problema é
que solução adotada por Bolsonaro, de terceirizar parcela vultosa dos recursos
federais aos congressistas, fez com que perdesse a capacidade de produzir
políticas públicas minimamente coerentes, o que foi um dos fatores de sua
derrota eleitoral.
Algumas dessas mudanças no presidencialismo
de coalizão são institucionalmente embasadas, outras são derivadas de fatores
políticos conjunturais, como a polarização que afeta a dinâmica parlamentar e
dos governos estaduais, além da necessidade de STF e TSE garantirem a
democracia com poderes extraordinários. O quanto esse modelo extremamente
pulverizado permanecerá no futuro? Já há pressões sociais para reduzir o poder
político do sistema superior de Justiça, como também reclamações enormes contra
a lógica do orçamento secreto, que, embora formalmente extinto, ainda tem
guarida num modelo paroquial e fragmentado de emendismo parlamentar.
A dinâmica futura do sistema político
dependerá basicamente dos sucessos de políticas públicas do governo Lula III.
Como o clássico trabalho de Theodore Lowi mostrou, o êxito de políticas pode
alterar a dinâmica da política. Desse modo, se a política econômica der certo,
junto com boas ações setoriais, especialmente na área social, certamente a
popularidade presidencial vai crescer. Se tal cenário se consolidar nos dois
últimos anos de governo, obviamente que a maioria dos deputados, senadores e
governadores vai querer apoiar o time da situação. Isso pode reduzir os efeitos
da fragmentação e gerar um presidencialismo de coalizão mais equilibrado,
inclusive com uma liderança mais forte do presidente da República.
Mas no curto prazo o jogo é mais difícil. A
situação minoritária no Congresso Nacional, a polarização extremada alimentada
pelo bolsonarismo, o poder de emergência constitucional conferido ao STF, a
desconfiança de parte dos governos estaduais, o conflito com um BC autônomo, a
dificuldade da maior parte do petismo de entender a necessidade de dividir o
poder, em suma, todos os fatores fragmentadores estão, por ora, vencendo o
jogo. Só que é possível enfrentar de forma incremental esse problema,
melhorando a coordenação política e administrativa para colher frutos daqui a
dois anos.
Resumidamente, há cinco formas de
estratégias de coordenação que podem semear um poder futuro maior ao Lula III.
Primeira, escolher poucos projetos legislativos prioritários, com maior apelo
social, e liderados por governistas que saibam conversar com o sistema
político. Segunda, ter uma parte central da agenda governativa que possa ser
bem realizada sem a necessidade de alterações legais maiores. Terceira, dividir
o poder e os recursos com o Centrão, mas criando alianças entre os ministérios,
com projetos mais conjuntos e cooperativos entre os diversos grupos no poder,
especialmente por meio de mecanismos de coordenação e apoio administrativo que
favoreçam o sucesso de todas as políticas públicas, sejam as dos aliados mais
fiéis, sejam as dos novos “companheiros”. Quarta, fortalecer a cooperação
federativa e com a sociedade, sob uma lógica de parceria que facilita a boa
implementação dos projetos e o reforço da legitimidade do governo federal.
Uma última forma de estratégia de
coordenação frente à fragmentação vigente está no terreno de como fazer
política. É preciso colocar o diálogo político a serviço de boas ideias e dos
melhores compromissos entre posições diferentes. O ministro Fernando Haddad
está provando que isso exige trabalho duro, mas é possível e gera frutos. Se
todos no governo se comportarem assim, haverá mais chances de o sistema
fragmentado pedir para ser mais governista a partir de 2025. Afinal, a
perspectiva de manter-se no poder é o principal motor dos atores políticos.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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