O Estado de S. Paulo
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época ‘histórico-universal’
Grande e terrível, e complicado, parecia o
mundo aos olhos dos nossos avós há cem anos ou pouco mais. Era uma época de
democracias liberais em retirada, de fascismos aparentemente irresistíveis e de
um comunismo primitivo com características rigidamente estatistas. Apesar de
tudo, os que mantiveram a lucidez em meio ao caos puderam achar gradualmente um
fio condutor. Em última análise, e não sem conflitos ásperos, havia um fundo
comum – iluminista – entre as democracias liberais e o comunismo soviético, com
todas as suas falhas e mesmo os seus crimes fartamente conhecidos.
De fato, a destruição da razão, total e inapelável, era a marca dos fascismos: contra estes deveriam unir-se todos os demais para travar o que então se chamaria a mais justa das guerras. Os otimistas julgavam que se atravessava uma fase de “interregno”, passada a qual a razão iluminista acabaria por se impor, fosse qual fosse o futuro modelo de sociedade ou a forma de Estado. E, de fato, uma parte desse otimismo se materializaria no imediato pós-guerra, com a construção do sistema das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma espécie de atestado, obtido em meio a sacrifícios gigantescos, de que o progresso moral é afinal coisa deste mundo.
A ordem internacional então nascida teve a
óbvia direção norte-americana. A URSS e o campo socialista, presos ao modelo
original, nunca abandonaram a posição defensiva e a mentalidade de cerco – com
a nefasta e permanente compressão interna das liberdades. No clima da guerra
fria, a “guerra civil das ideologias” – capitalismo ou comunismo – constituiria
o dado negativo a enrijecer corações, vontades e mentes. Mas o “interregno”
parecia desembocar em boas novidades, como comprovado pelas quase quatro
décadas gloriosas da social-democracia e pela continuidade do experimento
rooseveltiano no outro lado do Atlântico.
Em rápidas palavras, o que acima descrevemos
foi o nosso “mundo de ontem”, para retomar uma expressão irreparavelmente
nostálgica de Stefan Zweig a propósito de um outro tempo, o que terminara em
agosto de 1914. Dele nos separa, para sempre, o colapso de uma das duas
superpotências, a afirmação e a crise subsequente da supremacia norteamericana,
bem como, e muito especialmente, a ascensão da China nominalmente comunista no
quadro de uma globalização que parecia caminhar por si só.
Menos felizes do que nossos avós, sequer
temos a certeza de algum futuro luminoso, passado o atual “interregno” ou
superadas as dores do parto. Do próprio coração do Ocidente político vem a
mensagem inesperada – a mais antiga democracia dos modernos declina de sua
prévia função hegemônica e, para enfrentar o enigma chinês, afirma cruamente o
próprio interesse bruto. Seu horizonte agora é “corporativo”, suas atitudes
oscilam entre o espírito dito transacional e o puramente predatório. E as ideias
para uma ordem mais universalista simplesmente definharam.
Para cada uma das nações “ocidentais”, entre
elas a nossa, a recomendação é igualmente seca – e inaceitável. Encharcado de
ideologia reacionária, o vice-presidente americano, J.D. Vance, ainda
recentemente advertiu os ex-aliados europeus de que o “inimigo principal” era
interno e morava dentro de cada um deles mesmos, a saber, a democracia
constitucionalmente organizada e a sociedade civil aberta e plural. O remédio
para os males contemporâneos consistiria em abandonar tais concepções e deixar
livre a fúria destruidora das correntes nacional-populistas, inclusive as que,
como na Alemanha, reatualizam ritos e símbolos de um passado mais que
imperfeito.
Não sendo o trumpismo um breve parêntese e
estando longe de esgotar seu espírito de conquista, a solução mais fácil para
muitos, até para a esquerda, é saudar sem espírito crítico o nascente desafio
chinês, quando não acorrentar-se à distopia de Putin, esta última com os pés
plantados na eslavofilia e a cabeça imersa no sonho imperial.
A ascensão chinesa – e da Ásia, mais
generalizadamente – é um destes fenômenos que dão forma a toda uma época
“histórico-universal”. A globalização seria essencialmente neoliberal, dizíamos
antes com dose maior ou menor de veneno; talvez agora devamos dizer que, na
verdade, era chinesa. Rótulos à parte, o certo é que a exitosa China sacrifica
inflexivelmente uma das pontas do conhecido trilema formulado pelo economista
Dani Rodrik: soberana e participante da globalização, ela esmaga a democracia
política da qual os “ocidentais” não podemos abrir mão sem nos desfigurarmos
existencialmente.
Tanto quanto nos anos 1930, os neoiluministas
estão na defensiva, resistindo a duras penas ao poderio e ao canto da sereia
das autocracias. Submetidos como fomos às “duras réplicas da História”, para o
bem e para o mal perdemos para sempre a crença ingênua em amanhãs radiosos. A
única coisa que podemos prever, sem possibilidade de erro, é que haverá luta –
e muito provavelmente será conveniente assumir a ética do Sísifo camusiano,
acostumando-nos à felicidade só possível numa luta que recomeça a cada dia.
*Tradutor e ensaísta, é coeditor das ‘Obras’
de Gramsci no Brasil
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