Folha de S. Paulo
Nos EUA, seitas dão continuidade às utopias
nostálgicas que radicalizam exigências morais de suposta proveniência bíblica
O medo comporta gradações, que variam do
temor ao pânico. Devem oscilar entre um e outro os sentimentos de milhões com a
notícia de que Pete Hegseth, secretário de Defesa dos EUA, compartilha em
vídeo a opinião de pastores contrária ao direito feminino de voto. É a
primeira vez em séculos que o poder americano desfaz publicamente um voto de
modernidade democrática.
A esse barbarismo segue-se outro: figura central do grupo, o pastor nacionalista cristão Doug Wilson associa hierarquia patriarcal à racial, garantindo que havia afeição mútua entre escravistas e escravos. Infere-se que também mulheres estariam afeitas à escravidão patriarcal. Tudo isso faz parte da ofensiva antifeminina de Trump, que agora tenta demitir a primeira mulher negra a dirigir o Federal Reserve, o banco central americano. O autocrata é conhecido pelo comportamento repulsivo para com mulheres. A intimidade de 15 anos com o pedófilo Jeffrey Epstein sugere que parceira segura é um misto de escrava sexual e boneca inflável.
Mas o medo não comparece só em preocupações
democráticas como também, sob forma de terror, em causas primais da aversão ao
feminino. Ganha proporções o tópico da "vagina dentata", fonte mítica
de fantasias de castração masculina. Disso é exemplar a comédia de terror
feminista "Teeth" (2007), de Mitchell Lichtenstein. Com reflexo na
modernidade big tech: Mark Zuckerberg, boneco ventríloquo de Trump, atemoriza-se em
público com a "falta de energia masculina nos EUA". A raiz do
pânico é a indistinção entre delírio e realidade, moldada pelo cinema de
catástrofe. A tela tanto precede a vida que a ficção se materializa aos olhos
de todos.
Isso inspira uma distopia como a de Margaret Atwood em "O Conto da Aia" (1985), sucesso no streaming: no
futuro, as mulheres se tornam escravas sexuais de uma elite poderosa. Uma
distopia feita de imaginação, realidade da opressão feminina nas ditaduras
islâmicas e ideologia patriarcal de comunidades espelhadas no nacionalismo
cristão. Nos EUA, país de cidadania conformista com o sistema e religião como
modo de vida, as seitas dão continuidade às utopias nostálgicas que radicalizam
exigências morais de suposta proveniência bíblica. Cultua-se não o país real,
mas o que se supõe ter sido no passado.
Daí um primitivismo aberto a mitos
regressivos, refratários à autarcia feminina. Concretizado, o terror mítico é
fissura na dita modernidade da América. Não simples detalhe de superfície numa
poderosa infraestrutura econômica-militar, mas indício embrionário do colapso
moral que sinaliza o fim do ciclo hegemônico de um império. "Tem um
momento em que toda família começa a apodrecer", dizia Nelson Rodrigues ("Flor de Obsessão"). Pode
acontecer com nações. São claros os sinais na América trumpista.
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