sábado, 21 de maio de 2011

Resenha de 'Sobre a revolução', de Hannah Arendt

Sobre a revolução, de Hannah Arendt. Tradução de Denise Bottmann. Editora Companhia das Letras, 416 pgs. R$ 55

Por Eduardo Jardim

O livro “Sobre a revolução”, dedicado por Hannah Arendt a Gertrud e Karl Jaspers e publicado em 1963, pouco mais de dez anos depois de “Origens do totalitarismo” (1951), é um marco na literatura política do século XX. Ele faz parte do período mais rico da trajetória intelectual da filósofa, quando foram escritos também “A condição humana” (1958), e a coletânea de ensaios “Entre o passado e o futuro” (1961). “Sobre a revolução” indaga sobre o significado e o legado das duas revoluções fundadoras da história política moderna — a francesa e a americana.

O livro inicia indicando os traços comuns aos dois eventos, que permitem chamá-los de revolucionários. Nos dois casos ocorreram mudanças radicais no curso dos acontecimentos e ambos foram marcados pela violência. Além disso, os dois estampam o pathos da novidade — o que supõe uma compreensão linear do tempo tipicamente moderna. Porém, nem a mudança nem a violência são em si mesmas revolucionárias. A primeira só é revolucionária quando instaura um novo início. A segunda apenas quando, além de libertar da opressão, constitui o reino da liberdade e cria uma forma totalmente nova de governo republicano. Assim, duas forças atuam nas revoluções que são dificilmente conciliáveis. De um lado, estes eventos são pura espontaneidade e encarnam a experiência de agir livremente, de outro, precisam edificar novas instituições estáveis e duradouras que possam abrigar a liberdade. O peso diferente de cada uma destas forças bem como a relação entre elas condicionaram o destino contrastante das duas revoluções.

A revolução francesa eclodiu em um ambiente de opressão de uma massa da população extremamente pobre. Além disso, não havia na história pré-revolucionária da França nenhuma experiência no trato das questões políticas fora dos círculos oficiais. A revolução foi aclamada em seu apelo libertário. No entanto, logo em seguida, a força da questão social impôs-se e reduziu o significado da liberdade ao da libertação da necessidade e da pobreza. Também a pluralidade — condição essencial para o exercício da política — foi sacrificada em nome da igualdade dos que foram chamados pelos revolucionários de “le peuple”. Rousseau, com seu conceito de vontade geral, foi o teórico da revolução francesa. Na avaliação de Hannah Arendt, a revolução morreu em seu berço. No entanto, ela serviu de inspiração para todas as revoluções que seguiram, as quais reconheceram no sofrimento não um estado a ser superado, mas o motor da História.

A visão de Hannah Arendt da revolução americana é muito mais favorável. O entusiasmo com a figura de Thomas Jefferson contrasta com a avaliação muito crítica de Rousseau. Dois fatos pesaram positivamente para o sucesso da experiência americana. A revolução foi precedida pela libertação da pobreza. Assim, a dimensão propriamente política da iniciativa revolucionária pôde ser destacada. Por outro lado, mesmo antes da independência, em cada pequena comunidade por todo o país, tinham sido formadas assembléias com a participação dos cidadãos.

O desafio enfrentado pela revolução americana foi o da criação de instituições políticas que garantissem o espaço onde a liberdade podia aparecer. Neste ponto, os Estados Unidos fracassaram. A revolução tinha dado liberdade ao povo, mas falhou em fornecer um espaço para o seu exercício. Isto explica porque, nos Estados Unidos e nas democracias modernas em geral, o exercício da cidadania fique confinado no dia das eleições e que a atividade política seja a ocupação de políticos profissionais. A representação tomou o lugar da ação.

O último capítulo do livro corrige parcialmente esta asserção. Duas formas políticas novas surgiram nas revoluções modernas — o partido e o conselho popular, o sistema partidário e o de autogestão, a democracia representativa e a direta. A experiência dos clubes revolucionários na França, das comunas de 1870, dos sovietes nas duas revoluções russas, do levante húngaro de 1956, mostra que pode haver uma forma de organização que revigora o exercício da política. Porém, esta é uma “triste e estranha história que precisa ser contada”, pois, em cada um destes episódios, os conselhos foram esmagados e prevaleceu o sistema centralizador dos partidos.

Trata-se de um livro desiludido? Sim e não. Ao considerar o cenário contemporâneo, a autora só pode lamentar o esvaziamento da política nas democracias de massas. O tesouro das revoluções está perdido. Por outro lado, o livro é um exame da história das revoluções e, como todo esforço compreensivo, deve “examinar e suportar conscientemente o fardo que os acontecimentos colocaram sobre nós — sem negar sua existência nem vergar humildemente a seu peso, como se tudo o que de fato aconteceu não pudesse ter acontecido de outra forma.”

A recepção do livro foi muito reticente. Ele apareceu em uma época em que nem mesmo os americanos reconheciam a importância da sua revolução e a noção da revolução francesa vitoriosa ainda não tinha sido abalada. Também o ambiente da guerra fria, polarizado por esquerda e direita, não favorecia a visão de uma ideia libertária da política que desafiava todos os padrões. Hoje, o livro, com sua interpretação lúcida dos acontecimentos históricos e seu estilo potente e cativante, lança luz sobre os impasses da nossa época de uma maneira raramente vista.

Eduardo Jardim é professor de Filosofia da PUC-Rio e autor de “A duas vozes — Hannah Arendt e Octavio Paz” (Civilização Brasileira)

FONTE: PROSA & VERSO/ O GLOBO

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