Os tempos da Justiça são tão dilatados que em abril eu escrevi, neste espaço, que o país estaria, no julgamento da aceitação dos embargos infringentes, diante do risco de um fim melancólico do processo do mensalão. E esse é o momento em que estamos agora, cinco meses depois. Os réus já estavam condenados, mas o perigo vinha das infinitas possibilidades de protelação.
O caso do mensalão é exemplar não por punir dirigentes icônicos do PT ou por revelar um esquema financeiro que sequestrou o interesse público e o colocou a serviço de um grupo político. O que o tornou emblemático foi o processo. O Ministério Público passou por duas direções mantendo com firmeza o propósito de denunciar e defender a condenação dos réus. O devido processo legal deu a todos o amplo direito de defesa, mas eles foram condenados por um tribunal em que a maioria dos ministros foi escolhida por presidentes do grupo atingido.
Pela primeira vez o Brasil quebrava a tradição de ser um país de fidalgos, no qual a lei pesa sobre os sem nome e é carinhosa ou displicente com os poderosos. A importância da Ação Penal 470 vai além dela. O país tem avançado. Construiu alianças, que uniram até contrários na cena política, para voltar à democracia, estabilizar a economia e iniciar o processo de inclusão social. Mas permanece sendo um país no qual a mão da Justiça treme na hora de punir os crimes de quem tem poder.
O descaminho no qual o Supremo Tribunal Federal está parece banal para o senso comum. Um artigo de um regime interno obsoleto não pode se sobrepor a uma lei. É uma inversão da hierarquia do Direito. A Lei 8.038 não previu os embargos infringentes, mas eles penduram-se como um galho arcaico no regimento.
Os réus já estão condenados a penas de prisão em regime fechado ou aberto, mas o tempo e a forma de lidar com todas as intermináveis firulas legais ou regimentais determinarão se o país quebrou ou não o princípio de que é uma república orwelliana em que alguns são mais iguais que os outros.
Garantir todos os direitos dos condenados e protegê-los com o devido processo legal é o correto; cair nas armadilhas da protelação infinita é aprisionar a Justiça. Os réus têm direitos, mas a sociedade também os tem. O da sociedade é o que os juristas chamam de "efetividade da tutela penal": a certeza de que os que cometem crimes serão punidos.
Houve de lado a lado vários bons argumentos apresentados e houve sofismas. Na linha dos sofis-mas está a ideia de que os que votam contra esse artifício da defesa estão jogando para a platéia. Na linha do simples e inegável está a tese de que é desigual um sistema que estabelece tratamento diferente para dois condenados julgados por tribunais superiores. Quem é julgado pelo STJ não tem direito a esse recurso; quem responde ao STF terá esse direito, no caso de ele ser aceito.
Agora, só resta um ministro a votar. Ele não deve julgar usando o sentimento resumido na frase "todos estamos fartos desse processo" Deverá decidir pelo que ele considerar justo. É uma questão processual a que está sendo debatida, mas ela é o ponto em que o país confirma se quebra o privilégio da fidalguia ou se o mantém. Seja qual for o argumento, julgar novamente a coisa julgada será a forma de reduzir penas ou extingui-las. A Justiça sabe que o tempo trabalha a favor da impunidade e por isso existe o princípio da prescrição. O que se decide é se a Ação 470 será um marco para novo avanço institucional ou se será a confirmação do defeito que nos fez até hoje ser um país de desiguais perante a lei.
Fonte: O Globo
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