A história se repete. As relações entre o governo de Jair Bolsonaro e o Congresso começam a se parecer com a do desastre que foi a articulação da equipe de Dilma Rousseff com os parlamentares, no início de seu segundo mandato. A recente pauta-bomba (não se sabe quantas mais virão), do orçamento impositivo em uma versão mais robusta, se originou na trama do hoje presidiário Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que teve amplo apoio dos deputados e provocou o impeachment de Dilma. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que teve boas relações com Cunha, está na mesma posição, com o mesmo poder e continua sendo hostilizado por Bolsonaro. A diferença é que Bolsonaro sequer completou três meses de governo, ao passo que o inferno de Dilma se iniciou após mais de quatro anos no cargo.
Em mais uma fantasmagoria do passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, está sendo alçado à coordenação política da reforma da previdência, diante da absoluta falta de relações construídas com o Legislativo. Já lutando pela sobrevivência, a presidente Dilma deixou que seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, se encarregasse ele mesmo de tratativas sobre a batalha decisiva do momento - meta fiscal - com o Congresso. Desejou-lhe boa sorte, o que Levy, contra-indicado para a função, não teve.
A mesma atitude do governo premia agora Guedes, que terá, provavelmente os mesmos resultados. Sua audiência de anteontem no Senado mostrou que Guedes é sincero e defende com garra suas posições, mas sua habilidade com congressistas - e em geral com seus interlocutores - só é superior à do presidente Bolsonaro - que improvisa e manda alguém fazer o trabalho que cabe à Casa Civil.
Essas soluções da hora são um sinal de crise aguda. Mais do que fruto das caneladas de Bolsonaro no presidente da Câmara, e, por tabela, no Congresso, a reação do Legislativo tornou-se forte porque Bolsonaro perdeu prestígio muito antes do que imaginava. Pesquisa do Ibope mostrou que há rápida erosão de sua popularidade, em particular entre as pessoas que ganham de 3 a 5 salários mínimos - as de menor renda apoiaram Fernando Haddad, do PT.
A hostilidade da franja extremista do bolsonarismo ao Congresso não espanta, pois mimetiza gestos repetidos por décadas pelo então deputado Jair Bolsonaro: apoiam sem ressalvas um regime que prescinde da representação partidária e da democracia. Segundo o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, os militares salvaram o país de cair em uma ditadura. Ou, na do próprio presidente, não houve ditadura, mas "alguns probleminhas". Bolsonaro cava seu próprio buraco ao seguir seus instintos e menosprezar o Congresso e os políticos, por maior que seja a ojeriza da população por eles.
O filhos de Bolsonaro e acólitos no Planalto parecem apostar em nova "marcha da família" para libertar o presidente do cerco de "políticos corruptos" e do comunismo. Não vai funcionar. Os partidos, que esperaram calados para ver o que é a "nova política", estão boquiabertos e cada vez mais insatisfeitos com o papel de "despachantes" do Planalto. Os parlamentares do PSL, que se elegeram sob a aura do ex-capitão, deveriam estar contentes, mas não estão. Discordam entre si, querem derrubar as próprias lideranças e não têm rumo, como a coordenação do Planalto.
Bolsonaro abre um vácuo de poder, que será ocupado cada vez mais pelo Legislativo, à medida que seu capital político se consome rápida e gratuitamente. O orçamento impositivo, que obriga o Executivo a cumprir as emendas de parlamentares e, agora, de bancadas partidárias, não é negativo em si. Em países com partidos representativos (em geral, poucos) o processo orçamentário propicia que demandas da população abram caminho entre as prioridades dos estamentos burocráticos do governo. Mas, no atual contexto, significa mais dificuldades para o governo e mais gastos.
O Congresso tem um bom "saco de maldades" em estoque. Um exemplo é a ameaça da absurda conta de R$ 39 bilhões de ressarcimento aos Estados, decorrente de interpretação interessada da Lei Kandir. Diante de um governo que deu várias fraquejadas, ele aprovou também anistia por irregularidades em prestação de contas dos partidos e das multas que receberam da Receita. Bolsonaro começa a perder o controle da pauta do Congresso, que o Executivo sempre deteve, salvo em momentos de crise, e sua capacidade de governar está sob séria ameaça. Ele, porém, acha que tudo isso não passa de "chuvas de verão". O inverno pode ser tenebroso.
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