Correio Braziliense
Com uma coalizão de centro-esquerda, Lula
pretende conduzir a frente política que o levou à Presidência pela terceira vez
na direção do combate às desigualdades
A posse dos ministros do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva foi ofuscada pelo velório de Edson Arantes do Nascimento.
Repetiu-se o mesmo fenômeno do dia da morte do maior atleta do século passado,
que será enterrado hoje. Grande massa de torcedores santistas e de outros
comparece ao estádio da Vila Belmiro, em Santos, para reverenciá-lo.
Personalidades do mundo esportivo nacional e internacional também. Corintiano,
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em meio à montagem de seu governo e às
primeiras medidas administrativas, viajará de Brasília para Santos para
participar das últimas homenagens fúnebres.
Talvez o maior atleta profissional de todos os tempos, em 14 de junho de 1970, Pelé, camisa 10 do Brasil às costas, agachou-se no círculo central do gramado do estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, sob olhar de Tostão, e amarrou pacientemente sua chuteira. Ao fazê-lo, inventou o marketing esportivo, mais ou menos como João Gilberto inventara a bossa nova em 21 de janeiro de 1962, ao cantar Chega de Saudade no Carnegie Hall, em Nova York, até então um lindo samba canção. Uma chuteira Puma continuaria igual a uma Adidas, mas o futebol mundial nunca mais seria o mesmo, com as transmissões dos jogos pela tevê.
Além de bola, camisas, meias, chuteiras,
shorts e outros materiais esportivos, uma infinidade de outros produtos, como
refrigerante, cervejas e complementos alimentares passaram a associar sua marca
ao futebol. Os mais velhos devem se lembrar do terno de tergal da Ducal, com um
paletó e duas calças, vendidos pelo crediário.
Hoje, os craques do futebol são manequins
das grandes grifes mundiais. O advento da tevê a cabo e das redes de internet
completou o ciclo, com o esporte ocupando o espaço nobre para suprir os novos
meios de comunicação de conteúdos que aliavam audácia, beleza, criatividade,
emoção, energia e resiliência, entre outros atributos positivos, de produções
de grande audiência e relativamente baratas.
Pelé também simbolizou a ascensão social e
econômica por uma via que até então era objeto de grande atração popular,
graças à rivalidade das torcidas, mas reproduzia a exclusão social e a enorme
distância entre a grande massa popular e as elites brasileiras. De 1924, quando
Vasco da Gama rompeu com isso, recusando-se a dispensar 12 jogadores negros,
mulatos e pardos para participar do Campeonato Carioca, aos dias atuais, foi um
longo processo.
Gradativamente, o futebol se tornou uma via
de ascensão social e econômica pelo talento, chegando aos dias de hoje como um
dos maiores e mais bem remunerados espetáculos de massa. Os grandes atletas
ganham fortunas inimagináveis, inclusive os brasileiros que jogam no exterior,
exibindo roupas de grife e carros de luxo, além de ostentar padrões de consumo
extravagantes, como comer carne folheada a ouro em restaurantes de alto luxo.
Desigualdades
Entretanto, o Brasil que Pelé projetou
internacionalmente, muito mais do que qualquer outra personalidade, precisa
virar a página das desigualdades e injustiças sociais, entre as quais o racismo
estrutural. Pelé fecha o ciclo de profissionalização e globalização do futebol,
foi protagonista dessa mudança. Entretanto, sua trajetória, em comparação com a
de outros atletas de sua geração, como Mané Garrincha, desnuda essa realidade.
É aí que entra em cena o novo governo Lula, ao propor um pacto na sociedade
para superar a abissal distância entre os ricos e a maioria da população, com
renda até 2 salários-mínimos.
Desde a eleição de Getúlio Vargas, em 1950,
não tínhamos uma disputa eleitoral em que as diferenças de classe social
estivessem tão demarcadas. Esse fenômeno foi agravado por uma polarização
ideológica que colocou em risco a democracia e fraturou a coesão social em
torno de alguns valores que estavam acima das divergências políticas, como a
identidade com as cores da bandeira e o pertencimento à nação.
A posse dos ministros de Lula, em diversas
áreas, especial de Camilo Santana na Educação e Nísia Trindade na Saúde,
sinalizou na direção da superação dessas diferenças, com o resgate de políticas
públicas universalistas, porém nossas prioridades regrediram décadas, como a
alfabetização e a vacinação das crianças, por exemplo. São enormes os desafios
no plano econômico e administrativo para que as condições de mobilidade e
progresso social sejam oferecidas a todas as camadas sociais.
Vivemos um momento muito desafiador. Com
uma coalizão de centro-esquerda, Lula pretende conduzir a frente política que o
levou à Presidência pela terceira vez na direção do combate às desigualdades.
Não é uma tarefa fácil. A agenda social do governo precisa ser calibrada de
modo a ter amplo apoio das forças democráticas, que têm interesses econômicos
diferenciados.
O principal desafio é obter o apoio do Congresso Nacional, no qual predominam forças conservadoras e velhas oligarquias políticas. Sem uma base parlamentar, não haverá combate às desigualdades; sem combate às desigualdades, não haverá mobilização popular em apoio ao novo governo.
Um comentário:
João Gilberto gravou ''Chega de Saudade'' em 1958,em um compacto da época,78 rpm.
Postar um comentário