sábado, 15 de junho de 2024

Carlos Góes - A ‘taxa das blusinhas’ no país da desigualdade

O Globo

Esta semana, o Congresso aprovou mais uma política de incentivo ao setor automobilístico, batizada de “Projeto Mover”. Mas esta coluna não é sobre isso. Embutido no projeto havia um “jabuti”: a instauração daquela que ficou conhecida como a “taxa das blusinhas”.

Se o leitor não sabe, trata-se de um novo imposto de importação.

Na legislação brasileira, estava prevista a isenção de Imposto de Importação para pessoas físicas sobre encomendas de até US$ 50. Agora, os impostos federais e estaduais que incidem sobre esse tipo de importação passam a ser de cerca de 46%. Para encomendas acima de US$ 50, a incidência total é de 92%.

Em tese, o artifício deveria ser utilizado somente quando o remetente também fosse pessoa física. Na prática, plataformas chinesas de comércio pela internet, como AliExpress e Shein, utilizavam-se da isenção.

Vende-se diretamente para os consumidores, sem precisar da indústria ou varejo nacionais. Como esperado, houve uma forte reação das entidades que representam indústria e comércio no Brasil.

A reclamação tem alguma razão de ser. Quando alguns bens finais (como roupas) são isentos de impostos de importação, mas os insumos utilizados para fabricar esses bens no país (como máquinas, tecidos, etc.) pagam imposto, dizemos em economês que esses setores têm “proteção comercial negativa”.

Em português, esses setores têm mais dificuldade de competir. Isto porque eles têm custos altos devido a, entre outras coisas, os impostos que eles pagam por seus insumos, mas seus competidores entram isentos de tarifas.

Então quer dizer que a medida é acertada? Não é tão simples.

Se o novo imposto beneficia os varejistas e industriais nacionais, ele prejudica outro grupo de brasileiros: os consumidores que compram diretamente do exterior. Em termos econômicos, o consumo e bem-estar dessas pessoas sobe quando o preço dos bens que eles consomem cai ou quando eles têm acesso a novos produtos.

Mas seus reflexos vão além da economia. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Lavras fez uma pesquisa qualitativa superinteressante, em que entrevistaram 71 mulheres que compram nesses sites.

Uma das entrevistadas diz: “tenho mais opções para escolher.” Outra afirma: “no Brasil é difícil achar roupas bonitas para o meu tamanho.” Uma terceira: “eu quero me sentir parte da sociedade com roupas normais e (o site) proporciona essa inclusão.” A vida de quem compra ali vai ser negativamente impactada pelo imposto.

E quem são essas pessoas?

Segundo uma pesquisa contratada pela Shein, 50% dos seus consumidores vêm das classes D e E. Já os representantes da indústria e do varejo, armados de sua própria pesquisa, afirmam que a maioria desses consumidores ganha mais de 5 salários mínimos.

Se você é como eu, deve desconfiar desses dados que vêm das partes interessadas. Uma alternativa é comparar com o que sabemos de outros países, onde há mais dados disponíveis.

A isenção de importações de baixo valor não é exclusividade brasileira. Na China e na Índia, a isenção é de cerca de US$ 10; na Colômbia, de US$ 200; no Equador, de US$ 400; nos Estados Unidos, de US$ 800.

Os economistas Pablo Fajgelbaum (UCLA) e Amit Khandelwal (Yale) estudaram o caso americano e chegaram a algumas conclusões importantes. Usando dados muito detalhados de encomendas, eles mostram que o destino dessas é proporcionalmente maior em bairros de renda mais baixa. O fim da isenção seria, portanto, regressivo: o fardo recairia de forma desproporcional sobre os mais pobres.

O Brasil tem um limite de isenção que equivale a um oitavo do americano. É mais baixo, portanto, mesmo considerando que nossa renda média é um quarto da dos EUA. Já que se trata de bens baratos de rápido consumo, seria muito surpreendente imaginar que os padrões possam divergir muito daqueles encontrados pelos pesquisadores.

Toda medida tem ganhadores e perdedores. Nesse caso, ela beneficia empresários e trabalhadores dos setores protegidos. Mas ela vai prejudicar os consumidores. E, entre esses, o fardo muito provavelmente deve cair sobre os que em geral pouco consomem.

Agora, importar a baixo custo deve voltar a ser privilégio de poucos, como muitas coisas no país da desigualdade. Vai envolver pegar um avião e encher a mala no exterior, tirando vantagem de uma isenção de importação de mil dólares. Aos que não detêm os meios de locomoção para Miami, sobrará a 25 de Março.

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