Folha de S. Paulo
Judiciário compromissado com a Constituição é
essencial para o funcionamento da democracia
Neste domingo (1°), os mexicanos irão às
urnas para eleger cerca de 900 juízes federais, 1.800 estaduais e locais, além
dos nove membros da Suprema Corte. Essa é a primeira fase de um processo que
busca substituir todos os atuais magistrados mexicanos por juízes eleitos.
Esse experimento inusitado é decorrência de uma ampla reforma constitucional promovida pelo então presidente López Obrador, sob o argumento de que o Judiciário mexicano era elitista, corrupto, inoperante e cercado de privilégios, sendo necessário democratizá-lo.
É inevitável olhar para esse processo dentro
do contexto mais amplo da ascensão de populistas ao poder. Embora a literatura
esteja correta ao apontar para a multiplicidade de populismos —mais ou menos
inclusivos, mais ou menos autoritários, mais à esquerda ou à direita—, o fato é
que governos e líderes populistas, que se apresentam como única e autêntica
expressão da vontade popular, têm demonstrado enorme dificuldade de lidar com
os limites que lhe são impostos pelo sistema de Justiça.
O caso do México não é diferente. Após ver
frustradas pela Supremo Corte suas intenções de militarizar a segurança
pública, fragilizar a autoridade eleitoral autônoma e subordinar a Justiça,
Lopéz Obrador conseguiu maioria expressiva no Parlamento, dominado por seu
partido, para aprovar o seu modelo de Justiça democrática.
Na cartilha do neopopulismo, subjugar o
Judiciário é uma condição necessária para que as demais reformas possam se
realizar sem resistências ou solavancos. Tem sido assim em todos os países onde
a democracia constitucional entrou em processo de erosão.
Os métodos de subordinação variam. Na
Turquia, cerca de 2.700 juízes e promotores foram presos pelas forças de
Erdogan em 2016. No mais das vezes o método de subordinação é mais cirúrgico,
com a intimidação ou afastamento exemplar de alguns membros de cortes
superiores ou restrições de suas competências.
As tentativas de silenciamento judicial, no
entanto, normalmente são precedidas de processos de demonização e
deslegitimação. Basta olhar para a reação de membros do governo norte-americano
às decisões judiciais suspendendo inúmeras medidas de constitucionalidade
duvidosa; ou, no Brasil, os ataques ao Supremo, que culminaram na invasão e
depredação de sua sede.
O que surpreende no caso mexicano é a
radicalidade do modelo adotado. Há, em primeiro lugar, um temor real da
prevalência de candidatos apoiados pelo partido de Obrador, bem como pelos
cartéis de drogas, que dominam diversas regiões do país. De outro lado, há o
risco de que um Judiciário populista seja mais fiel ao clamor popular do que à
lei e à Constituição.
Em muitos países, como o Brasil, o Judiciário
também tem enormes problemas. Quando não se emendam, tornam-se presas fáceis de
populistas. Daí a necessidade de reformas que aumentem a imparcialidade, a
eficiência e a transparência na aplicação da lei, assim como reformas que
aumentem a diversidade e reduzam privilégios inaceitáveis do estamento
judicial.
Um Judiciário independente e compromissado
com a Constituição e a lei é uma peça essencial para o bom funcionamento da
democracia, a paz social e o próprio desenvolvimento econômico. O exemplo do
México é um alerta para a necessidade de qualificação dos sistemas de Justiça,
pois, como diz o ditado, nada é tão ruim que não possa piorar.
Escrevo essa coluna em memória do grande
editor e amigo Pedro Paulo Poppovic.
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