sábado, 31 de maio de 2025

Sobre Marina Silva e mais além - Paulo Fábio Dantas Neto*

A jornalista Dora Kramer é uma articulista que me acostumei a ler com regularidade. Frequentemente, a leitura de sua coluna na FSP suscita-me o reverente e ao mesmo tempo presunçoso comentário privado de que "assinaria embaixo". Foi o caso, por exemplo, do artigo da última quinta-feira, 29.05 ("A culpa não é da reeleição"). Nele, a colunista comenta falácias que prosperam, amiúde, quanto a supostos males republicanos da regra da reeleição para cargos majoritários e a supostos benefícios democráticos (e orçamentários) de haver menos, e não mais, eleições.

Veio-me um pensamento distinto ao ler o artigo de Kramer na mesma coluna da FSP, nesta sexta-feira, 30, intitulado "Marina como troféu na prateleira".  Dialogar com um texto de tão aguda e experiente articulista é o pretexto que escolhi para reinaugurar esta coluna, que não publicava há três meses.

Acompanho inteiramente a colunista quando ela aponta a impaciência que a visão da ministra Marina Silva sobre o "manejo das questões ambientais" causa ao governo que integra e ao próprio presidente. Também acompanho as suas avaliações de que a ministra tem perdido todas as batalhas internas e externas que tem travado. E a de que daí resulta um sinal de desprestígio da ministra, do qual senadores, oposicionistas e governistas, adversários de suas teses, tiram proveito para desacatá-la.

Nesse sentido, é feliz a definição de Kramer sobre os fatos ocorridos esta semana no Senado como uma "afronta suprapartidária". Do mesmo modo, é fiel aos fatos apontar o contraste entre a fragilidade da ministra, comunicada pela falta de apoio do próprio governo (é fato que o líder do governo na Casa evitou se envolver na querela) e a força e firmeza de Marina na discussão ocorrida, culminando com sua digna e altiva retirada do recinto. É fato também que, apesar de ter se saído bem, é provável que continue a acumular derrotas fáticas, não só em face da maioria adversária no Congresso, como pela inclinação do presidente da República a temer o poder do presidente do Senado. Por fim, é arguta a percepção da colunista de que Marina seguirá sendo exibida pelo governo como troféu para o mundo ver, enquanto objetivamente o próprio governo ajuda a "passar a boiada" que sua ministra tenta conter.

Penso que tudo isso que está escrito no artigo é verdadeiro. Mas nele há algo a mais que verdade - se o interpretamos como artigo de opinião política - e algo a menos que verdade inteira, se esperamos que ele traga uma análise mais complexa, já que procede de uma comentarista qualificada de política.

Um "algo a mais que a verdade" induz a articulista a fazer uma comparação algo insólita, a meu ver, entre a atitude do núcleo do governo em geral (personificado no senador Jacques Wagner) e do presidente Lula, em particular, para com Marina e para com políticos "alcolúmbricos". Inexiste um metro capaz de medir uma virtual "coerência" desejável do presidente nesse terreno polarizado. Ele e seu governo deveriam tratar aliados como Alcolumbre e Marina em pé de igualdade, usando a equidade dos estúpidos? Atribuir a Dora Kramer essa opinião não faria justiça à sua inteligência nem à sua reconhecida qualidade profissional, que a faz distinguir bem variados papéis institucionais desempenhados por distintos atores.

O texto sugere outra coisa. Sugere, segundo pude entender, que caberia a Lula, a Wagner e a quem mais tenha responsabilidade política no governo eleger e abraçar, tanto a causa, como a figura exemplar de Marina e repudiar as tristes figuras sem causa como Rogérios e Valérios, senadores adversários seus e do governo, ou muy aliadas do segundo, como Alcolumbres e Azises e a própria maioria do Congresso, sem a qual a própria colunista não tem cansado de frisar que é impossível governar.

Sou dos que mais criticam as escolhas políticas atuais de Lula, que não têm a estatura de uma política de alianças e sim de uma seleção de cúmplices para uma aventura populista. Mas entre isso e ter uma expectativa de que presidente e governo se comportem como vestais, a distância é grande.

Nesse ponto penso que o argumento de Dora se torna discutível, porque insuficiente. Parece refém de uma atitude moralista, aquém de um comentário político que ela é capaz de fazer. O artigo veicula um tipo de verdade parcial que está longe de retratar a íntegra da situação política.  Essa é composta menos por verdades e mais por opiniões; e não se decide por critérios de justiça e virtude e sim por contraste de forças. Admitir a realidade desse contraste de forças não exclui que posições bem informadas e valores relevantes possam ser sustentados contra o senso comum de uma maioria conjuntural recalcitrante. Essa seria uma atitude política excepcional possível, às vezes até imperativa, para não se perder a conexão da política com causas. Mas não pode ser a atitude política corriqueira. Então, pode-se criticar Lula e o governo por terem tomado como corriqueira uma situação talvez extrema de desmonte das salvaguardas ambientais do país. A conclusão de que o projeto de lei que causa a polêmica produz essa situação extrema não decorre automaticamente do fato dessa ser uma convicção do movimento ambientalista. Requer debate racional qualificado e assentado em dados e argumentos, que o movimento e personalidades importantes estão tentando reunir. Mas ainda que o caráter destrutivo da legislação em foco seja evidente e possa ser comprovado, a atitude passiva do governo pode ser vista como erro político, não como um erro de caráter moral, como, a meu ver, o artigo acaba argumentando.

Penso que a própria Marina não espera, sequer deseja, que seja moral (ou mesmo técnica, científica ou intelectual) a postura do governo diante da questão ambiental. Marina Silva não é Nísia Trindade.  Marina é uma persona política, mesmo que não seja uma política por vocação. Como tal, compreende e tenta valorizar o saber prático da política. Busca fazer concessões e certamente não pretende que o presidente, seus colegas de ministério ou os parlamentares da base do governo sejam ideólogos da causa ambiental. Esse papel ela reserva a si mesma, encarando a difícil - quiçá, impossível - missão de cumpri-lo e, ao mesmo tempo, ser um quadro atuante na política sistêmica, tal como essa política é.

Marina tem se saído bem neste Lula 3. Se pensarmos no tipo de objetivo que uma política como ela costuma perseguir, ela não é uma vítima, sequer uma perdedora. Cada derrota que sofre fortalece a sua imagem de política com causa, distinta de "tudo que aí está". Os dividendos eleitorais desse modo de fazer política são discutíveis, porque também são relativos. Mas o que parece mais lhe importar, no caso, é a preservação da sua imagem pública, graças à qual demonstra se sentir em paz com suas convicções e graças à qual cumpre papel carismático, de interpelar permanentemente o jogo político para que ele não se afaste muito de valores e de políticas que lhe emprestam boa parte da sua legitimidade original. 

Precisamos de políticas e políticos assim. E também precisamos, por outro lado, de políticas e políticos que sejam capazes de se postar numa diagonal em relação a valores e de lidar positivamente com o fato insofismável de que, na imprescindível política institucional, os fins imediatos predominam sobre os fins últimos e amparados em valores. Trata-se de uma luta interminável, que revela, ao mesmo tempo, a dureza e a dignidade da política. Uma luta da qual Marina é um símbolo. Já seus operadores políticos são, por vezes, confundidos com meros algozes de causas nobres, quando nem todos o são.

Algozes de causas existem aos montes, na política em geral, na oposição e no governo. Agem misturados a razoáveis e lúcidos operadores. Os comentários que faço não são indulgentes com um realismo cínico que invoca o saber prático da política para sancionar pequenez política e delitos. Contudo, por mais que seja forte a tentação de ver aí uma santa guerreira lutando sozinha contra uma coalizão de dragões da maldade, isso é uma simplificação que qualquer grande política que mereça esse nome tem obrigação de combater, sob pena de ceder sua missão a heróis, ademais falíveis e improváveis. 

Em suma, Marina não merece ser tratada como heroína ou vítima se a queremos respeitar como ministra. Ela não se deixa anular. É assertiva, não abre mão da sua causa e vê a política institucional como via legítima para defendê-la. Seguindo essa via, deixou de se apresentar com a pele de ativista de um movimento social, ainda que conserve íntegros a sua afinidade e o seu compromisso com ele.

Outras personas políticas podem fazer outra escolha, guardando suas causas (e/ou convicções) no armário enquanto exercem funções governamentais. Podem fazê-lo como viagem sem volta, ou na presunção de que, mais adiante, poderão sacudir a poeira acumulada no armário e voltar a empunhá-las em público, se preciso. Pode-se discutir qual dessas escolhas atende melhor às necessidades do país, neste momento. Mas não se pode confundir essa discussão com outra, que é a discussão sobre qual escolha atende melhor às necessidades do governo, neste momento.

Parece fora de dúvida que, como assevera Dora Kramer, a escolha política de Marina incomoda ao governo, mais do que o ajuda a atingir seus alvos. Ela deve ser censurada ou aplaudida por isso? Eis uma questão genuinamente política. Questão que é um biombo a dissimular outra, de relevância política ainda maior: no atual momento é possível compatibilizar as necessidades do país com as necessidades do governo? Essa é uma conversa que vai longe, para além de Marina Silva, embora a inclua.

*Cientista político e professor da UFBA.

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