O Globo
Somos um grupo que não poderá dizer que seus
heróis morreram de overdose (ainda que os inimigos estejam no poder)
Quando nasci, minha avó era uma velhinha de
60 anos. Cabelos brancos, presos com uma travessa, chinelos baixos, vestido
desenxabido, de florzinhas miúdas (que, no interior de Minas, se chamava
maria-mijona). Varizes, muitas. Rugas, incontáveis. Olhos cansados,
frequentemente em busca dos óculos que estavam bem ali, na ponta do nariz. Suas
netas — hoje com bem mais de 60 e também já avós — vão à academia, andam de
salto alto, fazem uso de tecnologias inimagináveis naquele passado longínquo,
que foi ontem.
O imortal Austregésilo de Athayde — que parecia ter mesmo o dom da imortalidade — chegou aos 90 anos quase como símbolo de uma era extinta. Aos 92, o ator Othon Bastos vive o auge da carreira — lotando teatros, aplaudido de pé — com a peça que diz, já no título, a que veio: “Não me entrego, não”.
Estamos diante de uma safra de artistas que
não se entregou. Que passou pelos “50 anos em 5” de JK, por Maio de 68, pela
ditadura militar, pelos desastres Collor/Dilma/Bolsonaro; que foi do disco de
78 rotações ao streaming, da era do rádio às mídias digitais. Que pegou a
ressaca da Segunda Guerra e corre o risco de testemunhar a Terceira (e, quiçá,
última) ainda em atividade.
Jards Macalé e João
Donato, duas das mentes mais originais da música brasileira, nem pensaram
em retrospectiva, rescaldo ou repeteco. Compuseram (entre si e com outros
parceiros) dez faixas inéditas e lançaram em 2021 o disco “Síntese do lance”.
As fotos de divulgação os mostram esbanjando juventude: seminus, irreverentes,
com meias coloridas — um beirando os 80, o outro com os 90 batendo à porta.
Somos uma geração que não poderá dizer que
seus heróis morreram de overdose (ainda que os inimigos estejam no poder).
Chico Buarque completará 81 no mês que vem, um ano e pouco depois da série de
shows com Mônica Salmaso. Milton fez sua espetacular “Última sessão de música”
aos 80. Aos 82, Caetano
Veloso foi a estádios abarrotados para ouvi-lo ao lado de Maria
Bethânia. Com a mesma idade, Gilberto
Gil se despede dos palcos, reverenciando o “Tempo Rei”. Nenhum deles
datado, todos ainda relevantes.
O Ney
Matogrosso de 83 anos não perde em nada para aquele que se vê nas
telas em “Homem com H”, meio século mais moço. Roberto Menescal (87) prepara
turnê no Japão, em julho. Roberto Carlos (84) negocia mais um especial de fim
de ano. Elio Gaspari e Dorrit Harazim (81 e 82) seguem, impávidos, nas páginas
do GLOBO. Nesta semana, Francis Hime, aos 85, lançou um disco de inéditas.
Áurea Martins gravou, aos 82, o luminoso “Senhora das folhas” — e circula com o
show pelo país.
Ary Fontoura esbanja vitalidade e bom humor
nas redes sociais. Adélia Prado publica novo livro e atrai milhares de
leitores. Ele, 92. Ela, 89. Que será que botaram na mamadeira (ou na
merendeira) dessa gente nos anos 1940?
No documentário “As Gingers”, Pedro Murad
acompanha as histórias de mulheres “maduras”, unidas pela arte do sapateado.
Maria Neide, 78, e Juju, 81, começaram a dançar aos 70. Jacyra tem 90 e se
tornou sapateadora depois dos 80. A idade que têm ao subir ao palco, só elas
sabem.
Não é velhice, como dizem os etaristas, nem
“melhoridade”, como romantizam os marqueteiros. É que não se fazem mais
octogenários (e nonagenários) como antigamente.
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