sábado, 31 de maio de 2025

Como vai você, geração 80? - Eduardo Affonso

O Globo

Somos um grupo que não poderá dizer que seus heróis morreram de overdose (ainda que os inimigos estejam no poder)

Quando nasci, minha avó era uma velhinha de 60 anos. Cabelos brancos, presos com uma travessa, chinelos baixos, vestido desenxabido, de florzinhas miúdas (que, no interior de Minas, se chamava maria-mijona). Varizes, muitas. Rugas, incontáveis. Olhos cansados, frequentemente em busca dos óculos que estavam bem ali, na ponta do nariz. Suas netas — hoje com bem mais de 60 e também já avós — vão à academia, andam de salto alto, fazem uso de tecnologias inimagináveis naquele passado longínquo, que foi ontem.

O imortal Austregésilo de Athayde — que parecia ter mesmo o dom da imortalidade — chegou aos 90 anos quase como símbolo de uma era extinta. Aos 92, o ator Othon Bastos vive o auge da carreira — lotando teatros, aplaudido de pé — com a peça que diz, já no título, a que veio: “Não me entrego, não”.

Estamos diante de uma safra de artistas que não se entregou. Que passou pelos “50 anos em 5” de JK, por Maio de 68, pela ditadura militar, pelos desastres Collor/Dilma/Bolsonaro; que foi do disco de 78 rotações ao streaming, da era do rádio às mídias digitais. Que pegou a ressaca da Segunda Guerra e corre o risco de testemunhar a Terceira (e, quiçá, última) ainda em atividade. 

Jards Macalé e João Donato, duas das mentes mais originais da música brasileira, nem pensaram em retrospectiva, rescaldo ou repeteco. Compuseram (entre si e com outros parceiros) dez faixas inéditas e lançaram em 2021 o disco “Síntese do lance”. As fotos de divulgação os mostram esbanjando juventude: seminus, irreverentes, com meias coloridas — um beirando os 80, o outro com os 90 batendo à porta.

Somos uma geração que não poderá dizer que seus heróis morreram de overdose (ainda que os inimigos estejam no poder). Chico Buarque completará 81 no mês que vem, um ano e pouco depois da série de shows com Mônica Salmaso. Milton fez sua espetacular “Última sessão de música” aos 80. Aos 82, Caetano Veloso foi a estádios abarrotados para ouvi-lo ao lado de Maria Bethânia. Com a mesma idade, Gilberto Gil se despede dos palcos, reverenciando o “Tempo Rei”. Nenhum deles datado, todos ainda relevantes.

Ney Matogrosso de 83 anos não perde em nada para aquele que se vê nas telas em “Homem com H”, meio século mais moço. Roberto Menescal (87) prepara turnê no Japão, em julho. Roberto Carlos (84) negocia mais um especial de fim de ano. Elio Gaspari e Dorrit Harazim (81 e 82) seguem, impávidos, nas páginas do GLOBO. Nesta semana, Francis Hime, aos 85, lançou um disco de inéditas. Áurea Martins gravou, aos 82, o luminoso “Senhora das folhas” — e circula com o show pelo país.

Ary Fontoura esbanja vitalidade e bom humor nas redes sociais. Adélia Prado publica novo livro e atrai milhares de leitores. Ele, 92. Ela, 89. Que será que botaram na mamadeira (ou na merendeira) dessa gente nos anos 1940?

No documentário “As Gingers”, Pedro Murad acompanha as histórias de mulheres “maduras”, unidas pela arte do sapateado. Maria Neide, 78, e Juju, 81, começaram a dançar aos 70. Jacyra tem 90 e se tornou sapateadora depois dos 80. A idade que têm ao subir ao palco, só elas sabem.

Não é velhice, como dizem os etaristas, nem “melhoridade”, como romantizam os marqueteiros. É que não se fazem mais octogenários (e nonagenários) como antigamente.

 

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