O Estado de S. Paulo
Nosso triste percurso culminou no chamado
Centrão, e não podemos descartar a hipótese de um partido dos ‘leiloeiros’
Escrevo esta crônica duas vezes por mês na vã
esperança de prestar algum serviço intelectual ao Brasil e, principalmente,
como reconhecimento pela honra que este grande jornal me proporciona.
Não sendo propriamente um guerreiro, devo confessar que às vezes me vejo abatido pela dificuldade de encontrar um fio condutor e tendo a atribuir esse fato à montanha de deficiências que acumulamos em nossos 525 anos de história. Que a situação em que nos encontramos tem muito pouco de alvissareiro é óbvio. Com algum esforço e aproveitando alguns bons momentos, poderíamos cogitar um futuro com mais chances de sorrir do que de chorar. O problema é que mal sabemos quem somos.
Até poucas décadas atrás, uma parcela
expressiva dos mais instruídos acreditava que a dicotomia direita-esquerda
seria suficiente para assegurar tal propósito. Hoje, é fácil ver que os
fragmentos desse modo de pensar só tem o Partido dos Trabalhadores (PT) como
seu depositário fiel. Pior, o PT dificilmente sobreviverá sem Lula, seu
pai-siamês, e a recíproca é verdadeira. Em 2026 saberemos se esse script nos
levará a algum paraíso terreno ou a um buraco sem fundo. A segunda hipótese
parece mais provável, uma vez que uma robusta parcela de nossa sociedade não
arreda pé da ignorância; prefere manter tudo como dantes no quartel de Abrantes
a se cacetear com o que se convencionou chamar de “esfera pública”.
Fujamos, no entanto, desse macabro
pessimismo. A última pedra do Muro de Berlim abriu espaço para a democracia
representativa. Admitamos que pelo menos no Ocidente ela ainda quebra o galho.
Mesmo em má fase e a despeito de tipos como Donald Trump, ela está longe de
jogar a toalha. Mas há um senão. Dispensar a clareza conceitual ela não
dispensa. Papagueando a expressão sem ânimo para penetrar em seu significado,
arrimá-la como entidade histórica não será fácil. Putins, Maduros, Viktor Orbán
e assemelháveis continuarão a proliferar em abundância, solapando os esteios
que a sustentam. E, aqui, esbarramos num problema sério.
Se pedirmos uma definição da democracia
representativa a um círculo de reluzentes letrados, desconfio de que nove em
cada dez se darão por satisfeitos dizendo que democracia é um sistema político
em que as posições de autoridade são preenchidas mediante eleições periódicas,
assumindo seus titulares o compromisso de prestar contas de suas decisões ao
eleitorado.
Aqui, desatentos, corremos o risco de
fraturar o dedão do pé naquela pedra que o poeta maliciosamente deixou no meio
da estrada. Tomando o conceito acima exposto ao pé da letra, quantas
democracias terão existido na História? Cem, mil, 10 mil? Temo que não, caro
leitor. Ao pé da letra, parece que só uma se configurou, a dos primeiros 500
anos de Roma, implantada à força pelos tribunos da plebe. Instituída há 2 mil
anos, por juramento, como lei sacrossanta, a República Romana não era frágil.
Era a maior potência do mundo conhecido, fato evidenciado pelo massacre de
Cartago, sua rival no outro lado do Mediterrâneo.
Findo o Império Romano, no século 5 (d.C.),
teremos de esperar até meados do século 16 para ouvirmos uma lucidez política
comparável à altitude material e militar de Roma. Refiro-me ao chefe de Justiça
( Chief of Justice) Lord Fortescue, um dos artífices da grandeza da
Grã-Bretanha. Coube ao arguto filósofo Bernard Crick recuperar uma passagem em
que Lord Fortescue descreve o Reino Unido como um dominium politicum et regale,
um domínio político e real, significando com tal expressão que “o rei poderia declarar
a lei somente em consulta e com o consentimento do Parlamento, não obstante
detivesse o poder absoluto para aplicar as leis e defender o reino”. Crick
complementa: “Um regime puramente regale não seria um regime politicum”. Lord
Fortescue, citado por Trevelyan, um historiador recente, não perde a
oportunidade para cutucar a grande potência situada no outro lado do Canal: o
sistema de justiça, mais ou menos como o conhecemos na atualidade, já era
cantado em prosa e verso pelos ingleses, que o contraponteavam ao francês,
“onde a tortura ainda era livremente usada”.
Foi por acaso que esbarrei nessa referência
ao Judiciário francês do século 16, que me arremessou de volta a uma nota
desagradável. Nós, brasileiros, talvez possamos zombar de alguns vizinhos, mas
seria de bom alvitre não fazê-lo na esfera do Judiciário, em razão do risco de
nos pagarem na mesma moeda fazendo menção aos rendimentos de que nossos
magistrados por vezes se apropriam. Partidos políticos confiáveis nunca tivemos
e não é certo que um dia os teremos. Na Primeira República (1891-1930), tivemos
a comédia dos “partidos únicos”, todos “republicanos”, excetuados os dois do
Rio Grande do Sul, que não eram propriamente partidos, mas facções
perpetuamente belicosas. Nessa matéria, nosso triste percurso culminou no
chamado Centrão, e não podemos descartar a hipótese de um partido dos
“leiloeiros”, uma grande agremiação em que cada parlamentar tivesse autonomia
para leiloar individualmente seu voto.
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