quinta-feira, 7 de julho de 2011

Parlamento no fosso: Entrevista Prof. José Álvaro Moisés

Estudo inédito mostra que o "presidencialismo de coalizão" no Brasil acaba por esvaziar a atuação do Congresso

Ivan Marsiglia

Lançado sexta-feira de modo inusual na tradição acadêmica - via internet, em formato e-book - O Papel do Congresso Nacional no Presidencialismo de Coalizão traz uma nova e preocupante visão das instituições democráticas no País. A tese central do cientista político José Álvaro Moisés, coordenador do estudo, é que "a democracia incorporou a hipertrofia do Poder Executivo herdada do período militar".

A pesquisa, realizada pelo Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, baseia-se em dados empíricos sobre o desempenho do Parlamento brasileiro entre 1995 e 2006, abrangendo os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso e o primeiro de Luiz Inácio Lula da Silva. Mostra que, se por um lado o chamado "presidencialismo de coalizão" resolveu o problema da governabilidade - apontado no estudo pioneiro do cientista político Sérgio Abranches em 1988 -, por outro esvaziou de protagonismo o Congresso Nacional. E prejudicou seu papel de fiscalização do Poder Executivo.

Na entrevista a seguir, o professor José Álvaro Moisés expõe os riscos embutidos nesse padrão de funcionamento das instituições, fala da consequente deterioração da vida política no País e discute os percalços vividos pela presidente Dilma Rousseff com sua base de apoio no Congresso.

Que novidades a pesquisa traz?

Nosso estudo está situado em uma agenda de pesquisas sobre a democracia apoiadas em dados empíricos. Ele se insere numa tradição de trabalhos realizados desde os anos 90 sobre Legislativo e Executivo. A contribuição nova, creio, é um olhar que não se restringe ao ângulo da governabilidade - segundo o qual o Congresso tem respondido de maneira positiva ao Executivo e mostrado um padrão de funcionamento em que parlamentares são disciplinados em relação aos partidos e suas lideranças. Isso é importante, e diversos colegas da área de ciência política, como Fernando Limongi, Angelina Figueiredo, Fabiano Santos e Amorim Neto já o afirmaram. Já não existe o risco, sintetizado na formulação clássica do Sérgio Abranches sobre o "presidencialismo de coalizão": a ideia de que temos um pluripartidarismo fragmentado, governadores fortes demais e um federalismo problemático que impediriam o Executivo de agir. Mas os estudos de meus colegas não tratam das consequências desse padrão de funcionamento. A pergunta que fica é: se o Congresso tem sua agenda fundamentalmente definida pelo Executivo, atendendo à governabilidade, como ficam a representação da diversidade da sociedade e suas funções de fiscalização?

Qual é a resposta?

Que todos os incentivos institucionais existentes desde a Constituição de 1988 quase que forçam os parlamentares a se comportarem de maneira reativa e positiva em relação ao Executivo. E perde-se a dimensão de accountability, ou seja, de autonomia do Congresso para, nos casos necessários, corrigir a ação do Executivo. Isso não quer dizer que, na doutrina de divisão de poderes, Executivo e Legislativo tenham que entrar em conflito, mas não se pode perder essa ação permanente de fiscalização.

Como se explica que em um quarto de século o Congresso tenha passado de uma situação de protagonismo, com a Constituinte e o debate sobre parlamentarismo, para o padrão atual, "mais reativo que proativo"?

Tem a ver com decisões tomadas no contexto da formação do "centrão", durante a Constituinte. Não podemos esquecer que ela se realizou sob a égide do governo Sarney. E que as escolhas institucionais feitas estavam muito focadas no que houve no período 1946-1964 - quando tivemos momentos de paralisia decisória por conta da queda de braço entre o Executivo e o Legislativo. O regime militar introduziu uma mudança em relação a esse aspecto com os decretos-lei. Hoje, a continuação dos decretos-lei são as medidas provisórias. Manteve-se a hipertrofia do Executivo que caracterizava o regime militar após a redemocratização. Isso prejudica a qualidade de nossa democracia. Um sistema democrático não pode representar a ditadura da maioria sobre a minoria. Já no século 19 John Stuart Mill chamava a atenção para isso.

Apesar da maioria folgada que possui nas duas casas, a presidente Dilma Rousseff tem tido grande dificuldade nas votações no Congresso. Isso não contradiz sua hipótese?

Isso é ocasional, parte do jogo através do qual se arma o funcionamento do presidencialismo de coalizão. Temos uma situação em que a presidente eleita não foi a figura que liderou a formação da coalizão. Então, está tendo que enfrentá-la agora, ex post facto, depois que o governo começou. O que os parlamentares da base aliada estão dizendo? "Nós formaremos a coalizão majoritária se forem respondidas as nossas demandas de distribuição de cargos e de recursos das emendas." Veja bem, não estou dizendo que isso é ilegítimo. Partidos existem para disputar o poder. O problema é em que condições. No caso brasileiro, em vez das condições de estabelecimento da coalizão estarem subordinadas à negociação pública de um programa, isso não ocorre. Por isso, Dilma está numa saia justa, obrigada a fazer uma série de concessões que havia dito que não faria.

Esse tipo de negociação explica por que o Congresso é tão impopular? O estudo registra que 80% dos brasileiros desconfiam da instituição e menos de 16% a aprovam.

São dados que trouxe de minha pesquisa anterior, sobre a desconfiança dos cidadãos nas instituições. Creio que há uma percepção dos eleitores de que as instituições não estão funcionando para aquilo que foram criadas. E aí temos duas leituras: uma diz que na democracia o que importa é que as instituições produzam decisões. Outra que, além de decisões, as instituições têm uma dimensão valorativa, que diz respeito a sua missão. Qual é a do Congresso? Incorporar a diversidade de posições da sociedade. Entretanto, como afirma meu colega professor Edson Nunes, da PUC-SP, no Brasil todo mundo está representado dentro do Congresso - mas este não age de forma a responder a essa representação. Sentimentos e aspirações da sociedade que colidam com a maioria jamais se realizam. Claro que nem sempre a opinião pública é justa com o Congresso. Por exemplo, verificamos na pesquisa que as CPIs produzem resultados de fato, encaminham relatórios ao Ministério Público e fazem proposições em lei para corrigir os problemas detectados. Mas isso não aparece de maneira clara para o eleitor. Se você pensar em todo o período democrático, dos anões do orçamento ao mensalão, passando pelos desmandos na compra de ambulâncias, há uma dimensão positiva que pouco aparece nas pesquisas de opinião. Não por acaso, 1/3 dos eleitores brasileiros acredita que a democracia poderia funcionar sem o Congresso ou partidos políticos. É perigoso ter por muito tempo uma percepção pública que deslegitime as instituições.

O sr. citou o "mensalão". Um trecho da pesquisa afirma que ele teria sido consequência da dificuldade de compreensão por Lula do presidencialismo vigente. Pode explicar?

Fernando Henrique sempre soube que o presidente sozinho não governa. No seu primeiro mandato, Lula não levou isso em consideração. No segundo, ele corrigiu. A experiência do "mensalão", desse ponto de vista, foi educativa. Lembre-se que antes de Lula assumir houve uma tentativa liderada pelo futuro ministro José Dirceu de fazer aliança com o PMDB, que Lula vetou. Seu governo ficou apoiado numa coalizão incompleta, com um ministério formado em grande parte pelo PT, e se desestabilizou. Autores como o professor Lúcio Rennó, da UnB, dizem que o presidencialismo de coalizão depende da virtude do presidente. Se o mandatário tiver habilidade e capacidade de negociar, cria uma base homogênea para acompanhá-lo.

Como se faz isso?

Com base em um programa de governo, claramente anunciado. Dizer para a sociedade: "Vai haver coabitação de partidos no governo, mas o programa que eles têm a realizar é este aqui". Como fiz parte do governo Fernando Henrique, o que vou dizer agora pode soar como observação parcial. Mas quero fazê-lo, tomando um passo de distância. Desde antes do início do governo, o presidente admitiu que o PFL faria parte da coligação. Chamou o PFL para governar e compartilhar responsabilidades. Por exemplo, foi feita uma correção na estrutura financeira, pelo Proer, apesar de uma série de bancos serem administrados por lideranças do PFL. O Econômico, na Bahia, foi fechado, o que deixou Antônio Carlos Magalhães muito bravo. O mesmo ocorreu no Paraná, com o Bamerindus. Em Minas Gerais, foi o banco da família Magalhães Pinto. Todos segmentos conservadores que faziam parte do bloco do governo. Mas o programa foi cumprido. É possível fazer uma composição com forças que não sejam homogêneas e, ao mesmo tempo, manter uma linha programática durante todo o mandato. Quando isso não ocorre o governo pode ficar sujeito a chantagens de sua base, como tem acontecido com a presidente Dilma.

Nota-se nos últimos anos um certo esvaziamento no perfil dos parlamentares. Quase não se veem mais os grandes tribunos. É um sintoma do problema que o sr. aponta?

É o resultado dessa deterioração na vida política, no padrão de comportamento e de decisões do Parlamento. Nós citamos na pesquisa o depoimento de parlamentares que em 2010 decidiram não disputar as eleições. Jefferson Péres foi um deles. Pedro Simon disse que não iria, acabou disputando, mas também se diz desiludido. Figuras de qualidade acabaram se afastando da vida parlamentar - porque esta perdeu importância. A hipertrofia do Executivo sobre o Legislativo é tal no Brasil hoje que o presidente praticamente define a agenda das casas, a partir dos líderes e da composição das mesas. E, além das medidas provisórias, tem a prerrogativa exclusiva de definir o orçamento e a famosa possibilidade de pedir "urgência" ou até "urgência urgentíssima" (risos). É o recurso do recurso.

Isso não ocorre em outras democracias?

Muitos cientistas políticos consideram haver no mundo uma tendência de fusão dos Poderes Executivo e Legislativo. Aparentemente, isso seria mais visível no parlamentarismo, onde o líder do Parlamento se transforma em chefe de governo. Ainda assim, o presidente brasileiro é provavelmente um dos mais poderosos do mundo. Nos EUA, onde as instituições foram formadas sob forte influência de Montesquieu, os federalistas estavam preocupados em criar pesos e contrapesos para as instituições. Há alguns meses, congressistas americanos ameaçaram votar um orçamento que não correspondia ao desejo do governo Obama. O impasse só se resolveu mediante uma negociação de natureza institucional, entre os dois poderes.

Fala-se em "hiperativismo do Judiciário". O presidente do STF, Cezar Peluso, argumentou que "o Legislativo tem que legislar". É uma resposta ao vazio deixado pelo Legislativo?

Sim. Eu não concordei com a decisão do STF a respeito da cláusula de barreira, por exemplo. Mas a lei, que foi produzida no Congresso, tinha problemas de tecnicalidade jurídica. O Congresso, às vezes, mesmo quando toma decisões importantes não leva em conta os cuidados necessários para que a lei não seja barrada no Supremo. Será que não foi o que aconteceu com a Lei da Ficha Limpa, que veio como uma legítima aspiração da sociedade? É mais um problema de eficácia do Legislativo. Outro exemplo é a união civil de homossexuais, definida pelo STF. Ela não poderia ter sido objeto de lei no Congresso? Tenho certeza de que há projetos nesse sentido lá. O problema é que eles nunca tramitaram. Descobrimos que há 26 mil projetos parados na Câmara e 8 mil no Senado. Mas incluir ou não um projeto para votação nas casas depende da vontade da coalizão majoritária.

O desempenho deficitário do Parlamento brasileiro dificulta o trabalho da oposição?

Como toda a lógica do sistema vai na direção de estimular os parlamentares a aprovarem proposições feitas pelo Executivo, isso induz a uma diluição do papel da oposição. Parlamentares que queiram ter suas emendas contempladas são obrigados a incluí-las nos programas do governo. E acabam empurrados a votar com a coalizão majoritária. Claro que há questões de interesse nacional, as quais a oposição pode e deve apoiar. Mas quando se verifica que em 45% das votações a oposição segue a orientação do governo, algo está errado.

O filósofo espanhol Daniel Innerarity disse sobre a ""primavera árabe"" e os movimentos na Grécia e Espanha que ""há um assalto generalizado contra a ideia da intermediação, uma visão segundo a qual a vontade geral é algo que se pode construir sem instituições"". A democracia representativa está em crise?

Vi essa afirmação e estive dialogando com o professor Renato Janine Ribeiro sobre isso. Acho que, primeiro, é preciso separar os casos. O anseio por democracia no mundo árabe não se confunde com a situação na Grécia e Espanha, que têm instituições, estruturas partidárias, direitos garantidos. Ainda que existam déficits de representação, democracias como a Itália e França introduziram mecanismos de consulta direta à população, como plebiscitos e referendos. A revolta popular no mundo árabe é uma força revolucionária que está gestando perspectivas novas. Mas veja que, no caso do Egito, a desmobilização ocorreu quando a junta militar que assumiu o poder prometeu uma nova Constituição. Ou seja, a ideia de que se ia institucionalizar foi uma resposta, boa ou má, aceita pelos manifestantes. Outra coisa é quando se defende a destruição das instituições. Aí, o risco que se corre é o da violência, da submissão dos mais fracos pelo poder dos mais fortes. No Brasil, ou no mundo, a democracia representativa precisa de reformas. Mas ela não está em questão. Precisamos valorizá-la e melhorar sua qualidade.

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

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