Por que o governo Dilma fez quase tudo errado no combate à alta dos preços
Esstou usando uma joia." Com essa frase, a apresentadora Ana Maria Braga apresentou o colar de tomates de seu figurino no programa da quarta-feira passada. Foi apenas uma das muitas piadas que pipocaram ao longo da semana sobre o mais novo símbolo da inflação. Numa piada da internet, a atriz Claudia Raia, chefe de uma quadrilha internacional de prostituição na novela das 9, diz que mudará de ramo e traficará tomates. Em outra, um caqui que se passa por tomate vai para a cadeia. Alguém sugeriu um novo programa social - Meu Tomate Minha Vida. Na semana em que a inflação acumulada nos últimos 12 meses ultrapassou o teto da meta estipulada pelo Banco Central, o Brasil se transformou no "país do tomate". Com alta de 122% em um ano, o fruto contribuiu para o índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechar o período em 6,59%.
Não se acredita num descontrole que leve o país aos patamares de inflação do final dos anos 1980, quando, na casa dos 1.000% ao ano, ela obrigava os brasileiros a apostar corrida, entre as gôndolas dos supermercados, com os funcionários responsáveis pela remarcação de preços. É um erro, porém, comparar os índices desses dois períodos, tantas foram as mudanças da economia na conquista da estabilidade. Mesmo que o patamar atual não pareça assustador, ele é, índices desse porte estão longe de representar um problema trivial. Um primeiro efeito: na semana passada, os supermercados divulgaram que, em fevereiro, registraram queda de 2,1% nas vendas de alimentos e bebidas, em comparação com o mesmo mês de 2012.
O consumo diminuiu sobretudo entre a classe média e os mais pobres. De acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), as vendas para famílias de menor renda caíram 4% em 12 meses. Essa situação — em que os maiores beneficiários do crescimento recente da economia brasileira perdem poder de compra - é a principal fonte de preocupação para o futuro político da presidente Dilma Rousseff.
Dois dias antes da divulgação do IPCA, a presidente convocara a seu gabinete três de seus principais consultores econômicos: o ex-ministro Delfim Netto, Luiz Gonzaga Beluzzo e Yoshiaki Nakano, que cuidou das contas de várias administrações tucanas. O governo só se pronunciou sobre o assunto depois que o índice foi divulgado, na última quarta-feira. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que não pouparia esforços para evitar a alta de preços e quis demonstrar otimismo. Afirmou que a entressaff a agrícola terminará em breve, que as pressões sobre o setor de serviços estão mais brandas. Também lembrou que a inflação de março foi a mais baixa do ano - segundo ele, um bom sinal. Procurado por ÉPOCA para comentar o assunto, Mantega não quis dar entrevista. O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, também não quis se pronunciar. Na sexta-feira, durante um evento em São Paulo, Mantega afirmou que "as medidas que forem necessárias serão tomadas pelo governo". "Não titubeamos em tomar as medidas, inclusive, posso dizer, mesmo medidas que são consideradas não populares, como elevação da taxa de juros, quando isso é necessário", afirmou. "O Banco Central tem dito que não há e não haverá tolerância com a inflação", disse Tombini no mesmo dia.
Sai o tomate, entra o camarão
É bom mesmo que o governo se preocupe. O Brasil é hoje o país do tomate da mesma forma que, no passado, foi o "país do chuchu" ou o "país da merreca". Nos anos 1970, quando a inflação disparou depois do choque do petróleo, o ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen tornou-se motivo de piada quando tentou expurgar o chuchu do cálculo para reduzir o índice da inflação, alegando que poucos brasileiros incluíam um alimento tão sem gosto em sua dieta. Pouco depois, o humorista Jô Soares, no programa Viva o Gordo, satirizava Delfim Netto com o personagem Doutor Sardinha - um ministro da Agricultura que, a muito custo, aprendia os nomes das frutas, legumes e tubérculos que pressionavam os preços para cima. Anos mais tarde, na ressaca do Plano Cruzado, uma nova geração de humoristas criticava a mudança constante da moeda durante o governo José Sarney. No programa TV pirata, o dinheiro, chamado "merreca", era desvalorizado e passava a se chamar "merreca nova". Ainda mais desvalorizado, virava "saco de pitomba", para terminar como "Narjara Turetta" - homenagem brincalhona a uma atriz de novela daquele tempo. O Brasil sempre fez piada com a alta dos preços.
A inflação, como as piadas sobre ela, faz parte de nossa história e de nossa cultura. Ela já foi uma epidemia na América Latina - e, nos anos 1990, foi controlada em quase toda a região. Em países como Chile (1% ao ano), Colômbia (1,8%), Peru (2,6%) e México (3,6%) a alta dos preços não assusta. No Brasil, também foi assim desde que o Plano Real adotou procedimentos transparentes para combater a alta dos preços e manter a estabilidade. A inflação só voltou a ser uma preocupação recentemente porque essa transparência entrou em xeque. Várias medidas do governo sugerem que ele tem sido menos rigoroso em pelo menos duas questões que interferem no combate à inflação - o câmbio e as contas públicas. A inflação atual é, portanto, um fenômeno bem distinto do que era no passado. Se, antes, temia-se o furor da remarcação, e todos os preços eram indexados e subiam por inércia, hoje a alta de preços tem uma natureza mais complexa do que sugerem os tomates da feira.
A inflação atual tem dois tipos de explicação. O primeiro, e nisso Mantega tem razão, tem a ver com fatores do momento - o vaivém das chuvas sobre a lavoura e a adequação dos preços ao alto nível de emprego e de consumo no país. O outro tipo de explicação são os erros do governo. A administração Dilma Rousseff reproduziu, em maior ou menor grau, mitos e lendas cristalizados ao longo dos anos no Brasil fatores de nossa cultura econômica que contribuem para alimentar a inflação.
Primeiro, as primeiras explicações. Até março, a alta dos alimentos foi de 13,5%, quase o dobro da inflação oficial. A principal causa foi a chuva que castiga o Sul, principal região de agricultura do país. Além do tomate, alimentos como a farinha de mandioca e a batata-inglesa subiram, em um ano, 150% e 97%, respectivamente. Temperos básicos usados no dia a dia, como alho e cebola, não ficam atrás. O tomate não se tornou o bode expiatório à toa. As chuvas atrapalharam o plantio em Goiás, principal polo produtor, onde também houve uma redução planejada da área plantada. Os produtores, desestimulados pelo baixo preço das caixas, investiram em outras culturas. A área plantada de tomate caiu 16%. Como a lavoura encolheu, o preço da matéria-prima essencial nas cantinas italianas subiu 122%, de acordo com o IBGE.
Para quem consome quantidades significativas, fez toda a diferença. Augusto Mello, dono da cantina Nello"s, em São Paulo, costumava comprar uma caixa de 20 quilos de tomate por R$ 35. Quando o preço chegou a R$ 180, ele tirou do cardápio o molho ao sugo - ficaria caro demais. Algo que parecia impensável tempos atrás - o molho de camarão ser mais barato que o molho de tomate - se reflete hoje no menu do Nello"s.
Essa alta dos alimentos pode ser sazonal. Segundo os pesquisadores, a tendência é que o preço se estabilize. "Há expectativas de boas safras brasileiras de milho e soja. Além disso, a entrada da safra americana deverá equilibrar o mercado, e os preços caem", diz José Carlos Hausknecht, sócio da consultoria MBAgro. Espera-se que o tomate e outros vegetais produzidos no Sudeste também barateiem, embora a produção venha crescendo devagar, contribuindo com os preços altos.
A inflação que afeta o setor de serviços - 60% da economia brasileira - é mais complicada. Os serviços não têm safra. Não se pode abrir mão de muitos deles. De acordo com o IBGE, o brasileiro gasta hoje entre 8% e 11% a mais com consultas médicas, aluguéis, condomínios e escola. Serviços também não estão expostos à competição internacional. Seus preços variam por critérios intangíveis - da qualidade oferecida ao poder de compra de quem precisa deles. Ficam mais caros por causa da mão de obra, outro combustível da inflação. Por trás dessa alta, está a indexação salarial - um dos fatores que resultam de nossa cultura inflacionária.
Os erros do passado
Ao segundo tipo de explicação, portanto. Os que nasceram depois dos anos 1980 não viveram o tempo da hiperinflação. O dinheiro do salário se desvalorizava ao longo do mês. As famílias tinham de fazer compras logo que recebiam o salário, pois uma ou duas semanas mais tarde não seria possível comprar nem metade dos produtos. Como os valores de aluguéis e prestações mudavam o tempo todo, periodicamente contratos e tarifas eram reajustados de acordo com a expectativa da alta de preços, um mecanismo conhecido como indexação. Tal mecanismo persiste no Brasil atual, onde vigora a reposição da inflação para tarifas, preços e salários. As datas anuais de dissídio coletivo e os aumentos reais de salário mínimo assegurados por lei são reflexo dessa cultura. Como no Brasil há carência de trabalhadores qualificados, e a elevação dos salários se dá, muitas vezes, acima dos índices de produtividade, o aumento do custo da mão de obra é um dos principais fatores da inflação, especialmente na área de serviços. O jeito de evitar essa armadilha seria desindexar tarifas e mexer na lei trabalhista - algo que o governo Dilma não pensou em fazer.
Outro fator que interfere na inflação é a crença de que o governo pode turbinar a economia pela interferência direta. Movida por esse credo, muito mais arraigado em sua gestão que no governo Lula, Dilma mexeu na economia logo no início do mandato - e mexeu mal. Isso desencadeou fatores inflacionários. Para mudar um cenário de crescimento econômico baixo, o governo resolveu estimular o consumo e negligenciou as medidas que poderiam criar segurança para novos investimentos. "Não era necessário, dado que o brasileiro já comprava bastante por causa da alta da renda e do emprego. Pesaram a mão", diz Carlos Thadeu de Freitas, economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio e ex-diretor do Banco Central. Com consumo em alta e investimento em baixa, cria-se um cenário de oferta estagnada diante de uma demanda crescente. É como se muitas pessoas disputassem a compra de um mesmo produto. A tendência, nesses casos, é o preço subir.
"O governo precisa concentrar suas baterias no estímulo ao investimento. Essas medidas só começaram a ser tomadas em meados do ano passado e, mesmo assim, de forma equivocada", afirma Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e chefe do Centro de Economia Mundial da Fundação Getulio Vargas. Para ele, o consumo das famílias não sofrerá nenhum revés significativo a ponto de precisar ser resgatado. A produção industrial, porém, está em queda desde janeiro de 2011. A interferência pontual do governo em vários setores causou insegurança no ambiente de negócios e minou a confiança dos investidores privados. Atitudes como tentar fixar um "lucro justo", no caso das concessões de rodovias, ou tornar obrigatória a presença estatal em setores como o petróleo também não contribuíram para atrair os investidores. As maiores obras de infraestrutura em andamento no país, as usinas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, só saíram do papel com recursos do Tesouro e participação de entes públicos. Para Langoni, se a intenção é estimular investimentos, é preciso definir um novo patamar de impostos para a indústria planejar a expansão da produção - não apenas bancar desonerações temporárias sem data certa para acabar. "A carga de impostos em cima dos investimentos ainda está em torno de 20%, 25%, número péssimo para um país emergente", diz ele.
Com as rodas na zebra
A crença de que o governo pode e deve comandar a economia vem do de-senvolvimentismo do século passado, uma mentalidade segundo a qual tudo valia a pena em nome de um "Brasil Grande". Vem também do desenvolvimentismo a crença de que um pouco de inflação não faz mal, desde que a economia cresça. Como a inflação é dos maiores concentradores de renda que existem, essa ideia aprofundou a iniqüidade social contra a qual o país luta até hoje. Resquícios dessa tolerância com o mal ainda persistem. Como um carro de Fórmula 1 que acelera e não se importa em passar com as quatro rodas em cima da zebra, o Brasil flertou com o teto da meta de inflação várias vezes desde 2011. Ninguém mais fala do centro da meta, de 4,5% ao ano. Em artigo recente, o presidente do Banco Central durante o governo Lula, Henrique Meirelles, questionou a existência de uma espécie de "banda" da inflação. Segundo ele, passa-se a impressão de que qualquer índice entre 2,5% e 6,5% seria adequado. "A experiência mostra que essa abordagem tende a deixar a inflação próxima do teto da meta, com riscos crescentes de estouro", escreveu Meirelles.
Por último, e talvez mais importante, o governo Dilma - como de resto, todos os governos democráticos antes dela — nada fez para controlar um importante fator gerador de inflação: o gasto público. Ele aumenta a necessidade que tem o governo de captar dinheiro no mercado, reduz a margem para a queda de juros e, numa economia indexada como a nossa, também afeta os preços no futuro. Do governo Collor ao governo Dilma, o gasto do governo federal como proporção do Produto Interno Bruto aumentou de 14% para 22%. "A forma que o governo tem de ajudar a controlar a inflação é economizar. Mas ele faz justamente o contrário. Gasta e abre mão de receitas com desonerações pontuais", diz Mansueto Almeida, especialista em contas públicas.
Há, portanto, dois jeitos de combater a inflação. O primeiro, de longo prazo, é deixar de lado as crenças culturais e fazer o dever de casa: reduzir gastos, criar um ambiente de negócios favorável ao investimento privado, desonerar impostos por igual, sem privilegiar alguns setores, e reduzir o tamanho do Estado. Quando isso não acontece, o país fica doente, e o jeito é chamar o médico - no caso, o Comitê de Política Monetária do Banco Central. O problema é que o remédio -a alta dos juros - é sempre amargo. Da administração certa de sua dose depende a tranquilidade dos brasileiros nos próximos meses, e um futuro eleitoral sem tomatadas para a presidente Dilma.
Fonte: Revista Época
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