- Valor Econômico
O vespeiro das benesses é candidato à lista de estelionatos
No seu discurso de diplomação, o presidente eleito citou uma única vez a palavra 'corrupção'. A revelação dos serviços prestados pelo subtenente Fabrício Queiroz e sua família a Jair Bolsonaro não tornou apenas o discurso do presidente eleito mais contido. Foi também capaz de silenciá-lo, bem como a seus filhos, "nas novas tecnologias que permitem a relação direta entre o eleitor e seus representantes", como Bolsonaro definiu no TSE o poder exercido sem intermediários.
Não há vídeos ou tuítes do presidente eleito sobre as revelações do Coaf, mas àqueles que ainda pelejam na intermediação, disse que não fazia a menor ideia das funções exercidas pela filha do subtenente num gabinete com 15 funcionários. Repetiu a explicação que dera, na campanha, quando questionado pelos serviços prestados por Walderice Santos da Conceição, funcionária de seu gabinete flagrada como vendedora de açaí em Angra dos Reis.
Foi também a mesma explicação dada pelo ex-deputado Sandro Mabel, figura proeminente do estrato parlamentar contra o qual Bolsonaro fez fama em sua disputa eleitoral. O ex-deputado, dono de uma fábrica de biscoitos que levava seu nome, era líder do PR quando se descobriu que seu gabinete integrava uma rede que abrigava funcionários fantasmas.
Dos seis integrantes da família do ex-PM, quatro prestaram serviços aos Bolsonaro, com salários de R$ 6,4 mil a R$ 8,5 mil. Ainda assim moravam numa casa simples na periferia do Rio. A coincidência entre a data de depósitos que somam R$ 1,2 milhão na conta do subtenente e aquela em que se efetua o pagamento dos funcionários reforçou a hipótese de que se trata da repetição de prática antiga em todas as instâncias federativas do Legislativo.
Na Câmara dos Deputados, parlamentares de todos os naipes se valem da cota de R$ 70 mil de que dispõem para a contratação de funcionários que recebem uma parte do acordado e repassam o restante para o titular do mandato. Não é uma prática do baixo clero. Frequenta eminentes gabinetes. O ex-ministro da Secretaria de Governo (governo Michel Temer) e da Integração Nacional (governo Lula), Geddel Vieira Lima apareceu em relatório da Polícia Federal como responsável pelo pagamento de empregados domésticos com verbas da Câmara quando exercia seu mandato de deputado federal pelo MDB.
As regras preveem que da cota de funcionários a que os parlamentares têm direito, metade fique no Estado de origem de seu mandato. Entre esses é comum que usufruam de benefícios (vale-refeição e vale-transporte e seguro saúde) e devolvam o salário para o titular do mandato. Não espanta que alguns apelem à venda de açaí para pagar suas contas.
Um ex-deputado estadual do Rio fez fama ao alardear ter cartão e senha de seus funcionários para sacar seus vencimentos. A prática configura peculato (desvio de dinheiro público), ainda que os sindicatos de servidores costumem silenciar sobre sua disseminação.
A Câmara tem funcionários que há décadas pulam de gabinete em gabinete oferecendo seus préstimos de repassadores de salários. Chico Alencar (Psol-RJ) foi o parlamentar que mais longe chegou na tentativa de mexer nessas transações. Alencar foi adversário de Bolsonaro na disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados em 2011. O deputado, que perdeu a disputa ao Senado e se despede da Câmara depois de quatro mandatos, teve 16 votos, enquanto o futuro presidente da República recebeu nove.
Em nenhuma das três vezes em que disputou o comando da mesa na Casa, Bolsonaro fez plataforma de campanha em cima do combate às benesses parlamentares - de gastos cujas notas nunca são auditadas ao auxílio-moradia de que já foi beneficiário, a despeito de ter residência na capital federal, passando pela verba de combustível usada para abastecer jatinhos ou gastos com planos de saúde que ultrapassam faturas de quatro dígitos.
As benesses não se limitam a ilicitudes sobre as quais se faz vista grossa, mas a temas caros ao novo governo como a Previdência. Como o governo eleito já acenou que pretende dar início à reforma dos benefícios dos servidores públicos, prevê-se uma lista de exceções a perder de vista - dos militares que vão compor a Esplanada aos atuais colegas do presidente eleito.
Na Casa em que passou 28 anos, os parlamentares contribuem com a mesma alíquota que seus empregadores, ao contrário dos demais servidores que o fazem em dobro. A despeito disso, o benefício tem a integralidade garantida, benefício que já não é garantido aos servidores admitidos depois de 2003 e que ameaça ser cortado também para aqueles que ingressaram no serviço público antes desta data para o bem das contas públicas.
Uma parte expressiva dos 49 milhões de eleitores que lhe confiaram os votos em outubro apostou que Bolsonaro chegaria ao Palácio do Planalto para acabar por decreto com a farra parlamentar. A sucessão de escândalos milionários envolvendo a traficância de interesses no Congresso relegou essas corruptelas ao tribunal das pequenas infrações, mas a familiaridade do presidente eleito com este universo demonstra que Bolsonaro já escolheu o tema para estrear suas contribuições à longa lista de estelionatos eleitorais que se acumulam em mandatos presidenciais das últimas décadas.
Para aprovar sua ambiciosa agenda de reformas, o presidente eleito será pressionado a compactuar com os vícios do parlamento que sobreviverão à peneira do futuro chefe do Coaf, o virtual ministro da Justiça, Sergio Moro. Qualquer outro que viesse a assumir o poder em 1º de janeiro também teria as mesmas dificuldades, mas nenhum deles, como o presidente eleito, colou tanto sua imagem à ideia de um Brasil passado a limpo.
Bolsonaro não foi eleito pela patente de capitão mas a composição da Esplanada mostrou que os militares se tornaram seus fiadores. A cobrança do vice-presidente, general Hamilton Mourão, pelo esclarecimento das transações financeiras do ex-assessor da família é apenas o sinal mais recente de que a fiança não é ilimitada. Não surpreende que Bolsonaro tenha terminado o discurso de diplomação com uma continência.
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