- Valor Econômico
Não se perde soberania nem poder emissor, mas é preciso cuidado com aspectos de lavagem de dinheiro
O Facebook anunciou recentemente a criação da libra, uma criptomoeda digital baseada em blockchain, a ser implementada em 2020. O objetivo declarado é constituir um meio universal de pagamento com uma "estrutura financeira que permita a milhões de pessoas ter acesso à economia do mundo e guardar seus bens com segurança", segundo o responsável pelo projeto, David Marcus. Depois do belo artigo de Gustavo Loyola neste Valor (A libra na balança dos reguladores, 1/7/2019, pág. A8), sempre se corre o risco de repetição; daí a opção de tratar do "poder emissor" como centro do ora discutido aqui.
A libra do Facebook se identifica com um debate que surgiu no século XIX: o free banking, corrente do sistema bancário livre, que vem despontando como a solução liberal contrária à teoria da moeda estatal e dos bancos centrais e que se baseia em dois princípios norteadores: a ausência de um órgão monetário para autorizar o funcionamento do sistema bancário e o fim do monopólio de emissão. Inicialmente, o conceito básico desse sistema residia na outorga de uma concessão para iniciar um estabelecimento bancário emissor a quem preenchesse os parâmetros básicos. Depois da grande crise monetária de 1837 nos Estados Unidos, que culminou com a suspensão dos pagamentos das notas bancárias, foi votada uma lei, em Nova York, determinando que a atividade bancária era livre, mas sob certas condições restritivas.
A emissão de moeda foi permitida a quem quisesse participar do sistema. O papel-moeda era registrado por uma agência oficial e entregue ao banco emissor somente após alguma garantia ter sido depositada sob a guarda dessa agência governamental. O público, avaliando a qualidade e a solidez de cada garantia, teria a possibilidade de optar por um ou por outro tipo de moeda. Assim, a suposição era de que, havendo concorrência entre os emissores, apenas sobreviveriam as emissões de maior garantia. O poder público, por sua vez, não era responsável pelas garantias apresentadas e não poderia se aproveitar mais da senhoriagem ou do financiamento de seus déficits.
Como na libra do Facebook, a teoria do free banking school assentava-se na ideia de que não deveria haver limites à emissão, a não ser aqueles impostos pela necessidade do mercado e da demanda de moeda por parte do público: esses limites seriam deixados à discricionariedade do livre mercado e não impostos por rígidas leis ou pelas autoridades monetárias. As características desse modelo incluíam a emissão lastreada não somente em ouro, mas em fidúcia, a garantia de que as notas bancárias seriam honradas. A liberdade de emissão estava apenas delimitada pela necessidade de moeda do mercado, pela disponibilidade e pelo desejo do público de manter e possuir aquela moeda. Como é possível perceber, a libra do Facebook, com o uso do blockchain, se vale dos mesmos idênticos princípios formadores.
Como ficamos ao cotejar a teoria do free banking no caso do Brasil? Por dispositivo constitucional, o Banco Central detém o monopólio da emissão do papel-moeda e da moeda metálica e executa os serviços de saneamento do meio circulante. Ele detém o poder de criar moeda com especificação legal, cuja quantidade, ao menos em tese, deve ser determinada pela oferta global de critérios de política monetária. É o Banco Central, através de seu Departamento do Meio Circulante, que manda imprimir moeda, geralmente na Casa da Moeda do Brasil, e distribuí-la. Daí é correta a afirmação de que o poder emissor é parte integral do poder do Estado, como sempre lembrou o prof. Arnoldo Wald. Em alguns países, como nos Estados Unidos, outorgou-se essa atribuição ao Legislativo, mas, entre nós, o poder emissor é de competência privada da União (artigo 21, inciso VII e VIII da Constituição de 1988). Apesar de a mesma Carta ter estabelecido em seu artigo 48 que ao Congresso caberia legislar sobre moeda, limites de emissão e montante da dívida mobiliária federal (inciso XIV), é o Poder Executivo que chama para si tal responsabilidade. Poderia o Facebook e seu consórcio criarem uma moeda privada?
Meu entendimento é que sim - pois não se trata de moeda, mas de criptomoeda, assim como é o bitcoin, que permanece semirregulado, a despeito das inúmeras controvérsias. Além disso, o risco efetivo ao sistema financeiro é baixo - especialmente se à libra do Facebook for vedada alavancagem nos termos de Basileia e do uso de capital patrimonial. Potencialmente, a promessa é de reduzidos custos de transação - por exemplo, não haverá depósito compulsório e, em tese, a cunha tributária sobre a Calibra, a subsidiária suíça responsável pela gestão das reservas e dos processos, é menor.
O problema da criação dessa moeda é outro, cultural e político. Não se perde soberania nem poder emissor, mas é preciso cuidado com aspectos de lavagem de dinheiro, principalmente quando se considera o atual anonimato das criptomoedas, e eventualmente a própria rentabilidade e segurança dos vários elos da cadeia.
Finalmente, a concorrência. Difícil prever, mas, em tese, é mais uma ameaça ao status quo. Walter Bagehot, um grande defensor das ideias do free banking do século XIX, já advertia: "nós estamos tão habituados a um sistema bancário único, dependente em sua função cardeal, que dificilmente poderíamos conceber qualquer outro. Mas qualquer outro sistema que tivesse surgido sem a interferência do Estado, seria o de múltiplos pequenos negócios, universalmente aceitos". Quem viver, verá?
*Jairo Saddi, pós-doutor pela Universidade de Oxford, doutor em direito econômico (USP), é professor da Escola de Direito da FGV-Rio.
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