- Valor Econômico
Dilemas de uma agenda liberal para o Brasil
Em seu discurso de despedida do Congresso Nacional, após 16 anos de atuação como senador e deputado federal, o mais famoso pensador liberal brasileiro, Roberto Campos, atribuía a três fatores o contraste entre o potencial de riqueza e o fracasso no desenvolvimento brasileiro.
Em primeiro lugar, viriam as deformações culturais, que Campos caracterizava como "a doença dos ismos": nacionalismo, populismo, estruturalismo, estatismo e protecionismo. Por meio dessas visões ideológicas que nortearam sucessivos governos, o Estado teria sido levado a fazer mais do que conseguia no aspecto econômico e menos do que devia no social. Paralelamente, o consumidor era punido pela ineficiência de uma indústria posta numa redoma contra a concorrência internacional e a absorção de novas tecnologias.
A segunda categoria descrita por Roberto Campos foram os erros comportamentais cometidos reiteradamente ao longo das décadas de 1970 e 1980: reserva de mercado na informática, planos heterodoxos de combate à inflação, moratória da dívida externa e, finalmente, aquela que, na sua interpretação, foi caracterizada como "o avanço do retrocesso": a Constituição de 1988, "intervencionista no econômico, utópica no social" e, no campo político, embrião para tornar o país ingovernável.
Por fim, o economista criticava nossa falta de persistência em levar as reformas até o fim. Presos numa espécie de "armadilha do meio-sucesso", tendemos a nos acomodar com vitórias parciais, quando seria necessário implementar novas mudanças que impulsionariam o crescimento sustentado. Discursando em janeiro de 1999, o octogenário político apontava para o Plano Real: apesar do sucesso no controle da inflação, a falta de comprometimento com as reformas fiscais estava na origem do ataque especulativo cambial que o país enfrentava naquele momento.
Vinte anos depois, temos um autoproclamado liberal no comando do Ministério da Economia. À parte o simbolismo de nomear Roberto Campos Neto para a presidência do Banco Central, Paulo Guedes assumiu para si a responsabilidade de dar um choque no Estado brasileiro. Depois de praticamente sacramentada a aprovação da reforma da Previdência, a equipe econômica prepara um pacote de propostas liberalizantes que passa por privatizações e concessões, racionalização do sistema tributário, quebra de monopólios para tornar a logística e a energia mais baratas, além de medidas para ampliar a participação privada no mercado de crédito.
Paulo Guedes esperou mais de 30 anos para colocar em prática sua agenda liberal para o Brasil. Como gosta de citar em suas entrevistas, suas ideias já estavam presentes no programa de governo que escreveu para o candidato Guilherme Afif nas eleições de 1989. Três décadas depois, conseguiu emplacar seu plano junto a Bolsonaro quando quase ninguém acreditava no sucesso do ex-capitão. Guedes emprestou sua credibilidade em troca de ser o superministro da Economia. Seu plano desta vez deu certo.
O segundo estágio de seu programa para a economia brasileira é mais ambicioso e também muito mais complexo do que a aprovação da Nova Previdência. Se o ministro realmente levar adiante o que tem prometido em suas entrevistas e apresentações públicas, Roberto Campos certamente ficaria orgulhoso.
De um lado, a combinação de uma reforma tributária que simplifique tributos com privatizações, quebras de monopólios e abertura gradual da economia atacaria diversos sintomas da "doença dos ismos".
Além disso, a proposta de novo pacto federativo que vem sendo anunciada pelo ministro, com uma ampla desvinculação de receitas e desconcentração para Estados e municípios, abala as estruturas sobre as quais foi erigida a Constituição de 1988, tão criticada por Campos.
A aprovação das mudanças previdenciárias fecha um ciclo de três grandes alterações legislativas que impuseram sobre os ombros da coletividade o ônus do ajuste modernizador da economia brasileira - antes dela vieram o teto de gastos e a reforma trabalhista. Ao colocar em pauta a redução da proteção tarifária às importações e uma racionalização da tributação, Guedes começará a desagradar interesses setoriais que se articulam muito bem no Congresso. Vencer essas resistências será um teste de fogo.
Na mesma direção, o superministro ainda não demonstrou possuir poderes para articular com outras áreas do governo políticas que ataquem de modo sistemático os elevados índices de desemprego e desigualdade em nossa sociedade. Sem atender a essa imensa parcela de despossuídos, fica difícil convencer que medidas liberais são capazes de melhorar a vida do brasileiro comum.
Num exercício de autocrítica, Roberto Campos se lamentava por ter sido "um profeta sem carisma", que conseguia identificar nossos problemas e desafios, mas, no exercício de sua atividade como político, não conseguiu ser "nem um grande articulador, nem um grande operador, nem um grande mobilizador". Em meio ao desenvolvimentismo dos anos 1950 a 1970 e à heterodoxia nas décadas de 1980 e início de 1990, Bob Fields pensava estar pregando no deserto.
Esse talvez seja o maior recado do patrono do liberalismo econômico brasileiro para o atual ministro da Economia. Para inserir seu nome na história como o executor de uma guinada liberal na economia brasileira, Guedes precisa suportar as pressões dos grupos de interesses que se levantarão contra suas medidas, operar muito bem os instrumentos de política econômica para entregar crescimento e estabilidade de preços no curto prazo e, principalmente, convencer as massas de que suas medidas liberalizantes são uma alternativa melhor a tudo o que Roberto Campos tanto criticava.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro"
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