- O Estado de S.Paulo
Fugindo da modéstia, o presidente citou um livro como exemplo, a cartilha ‘Caminho Suave’
Responsável pela educação de 01, 02 e 03, cavalheiros conhecidos pela cultura, pelo domínio da língua e pela riqueza intelectual, o presidente Jair Bolsonaro promete entregar em 2021 novos livros didáticos, mais adequados à formação de jovens produtivos e moralmente sadios. Os brasileiros têm sólidos motivos, portanto, para otimismo em relação a este ano, ao ano seguinte e, de modo mais amplo, ao futuro do País, se as novas diretrizes forem preservadas. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, certamente contribuirá para o sucesso da revolução educacional. Horizontes serão ampliados e os brasileiros, seguindo o exemplo do ministro, poderão escrever “imprecionante” e “paralização”, livrando-se da mediocridade das normas ortográficas.
O educador Bolsonaro anunciou no dia 3 de janeiro, na saída do Palácio da Alvorada, o compromisso de renovação dos livros didáticos. “Os livros hoje em dia, como regra, é um montão, um amontoado... Muita coisa escrita, tem que suavizar tudo aquilo”, explicou o presidente, segundo a transcrição publicada pela imprensa. Mais dedicado à oralidade do que à escrita, ele compõe, no entanto, um par muito harmonioso com o ministro da Educação. “Falando em suavização”, continuou o presidente, “estou vendo uma cabeça branca ali, estudei na cartilha Caminho Suave. Você não esquece. Não esse lixo que, como regra, está por aí. Essa ideologia de Paulo Freire.”
A preocupação com os grandes desafios brasileiros e com a insegurança global pode ter induzido a alguma confusão. Embora Paulo Freire seja considerado patrono da educação brasileira, suas ideias estão longe de ser dominantes. As escolas se distinguem também pelos métodos e estilos. Além disso, Paulo Freire notabilizou-se principalmente pela aplicação de suas ideias à educação de adultos. Ele recomendava levar em conta a experiência do grupo, suas condições de vida, suas preocupações e seu vocabulário. Bolsonaro, tanto quanto se sabe, nunca foi aluno de um desses cursos. Nenhuma pessoa bem formada a partir da leitura de uma boa cartilha precisaria disso.
Pouco propenso a exibicionismo, o presidente Jair Bolsonaro tem sido parcimonioso na referência a livros, a autores e a obras de arte. Não costuma ilustrar suas ideias com citações. Refere-se a Marx, de vez em quando, para condená-lo, mas sem jamais mencionar diretamente algum texto, digamos, do Manifesto Comunista, da Contribuição à Crítica da Economia Política ou d’O Capital. Tampouco se refere diretamente aos escritos de Paulo Freire, talvez por precaução. Mas dificilmente a citação de textos poderia contribuir para a difusão de obras nocivas à juventude, à prosperidade nacional e à vida cristã. Quem seria tentado a conhecer livros como Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática de Liberdade e Pedagogia da Autonomia, obras de um sujeito classificado por Bolsonaro como energúmeno?
O público mais atento ao formador moral e intelectual de 01, 02 e 03 dificilmente seria atraído por esse engano. Esse público é certamente parcimonioso no uso do tempo dedicado à leitura e sabe evitar o perigo. Quanto às pessoas menos prevenidas, é preciso continuar a instruí-las sobre as armadilhas frequentemente ocultas entre capas e contracapas.
Ao criticar os livros didáticos em uso no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro deu algumas pistas de seus planos salvadores. Esses livros, disse ele, têm “muita coisa escrita”. É preciso, portanto, suavizá-los. O aprendizado segundo o método Bolsonaro será facilitado e aperfeiçoado, portanto, com redução da “coisa escrita”. Convém ler menos para aprender o necessário e conveniente à civilização em construção no Brasil. A maioria dos brasileiros já pouco se dedica à leitura. É preciso difundir essa qualidade – a cuidadosa distância dos livros – e estendê-la, tanto quanto possível, aos universitários.
Se o ministro Weintraub foi suficientemente cauteloso, outros também poderão ser. O governo tem um bom conjunto de exemplos. Além de Weintraub, há a ministra Damares Alves e o ministro de Relações Exteriores, defensor de uma diplomacia cristã para um Estado laico. Ele cita livros de vez em quando, mas parece ter sido pouco prejudicado intelectual, moral e ideologicamente por seu uso. Mas nem todos têm essa capacidade. Por isso é necessário ajudá-los a evitar os perigos.
O presidente educador e seus principais auxiliares têm a seu favor, no entanto, um fato muito auspicioso e nem sempre lembrado. Paulo Freire escreveu muito e alguns de seus textos são longos. Algumas obras de Marx são enormes e complicadas. No Brasil, muitos comunistas nunca leram O Capital. Algumas das principais obras de Sartre, como O Ser e o Nada, são assustadoramente extensas. Mas também entre os chamados liberais há autores perigosos, especialmente porque fingem aproximar-se de valores do Ocidente. É o caso de pensadores como John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Dahl, Herbert L. A. Hart e Amartya Sen. Convém ser muito cuidadoso em relação a este último. Ganhador do Nobel de Economia, pode atrair a atenção de jovens desprevenidos. Mas todos esses, felizmente, são autores de textos longos e nem sempre simples, embora com frequência bem escritos – pelos padrões anteriores aos bolsonarianos e weintraubianos.
Ainda no dia 3, horas depois das palavras sobre os livros didáticos, o presidente Bolsonaro apoiou, por meio de nota do Itamaraty, a ação do presidente Donald Trump contra o general iraniano Qassim Suleimani. O governo brasileiro foi muito mais ousado, nesse momento, que os da Europa Ocidental. Preocupadas com as exportações para o mundo muçulmano, figuras importantes do agronegócio pediram cautela ao presidente Bolsonaro. Que são, no entanto, alguns bilhões de dólares diante dos valores cristãos encarnados pelo presidente americano? Certamente faltou a esses líderes a educação agora prometida pelo discípulo de Trump.
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