- O Globo
Leonardo Boff elogia “Dois Papas”, que encena a transição de Bento XVI para Francisco: “Eles são profundamente humanos, por isso têm sombras e luzes”
Desde a Idade Média, não acontecia nada parecido. Em fevereiro de 2013, Bento XVI reuniu os cardeais e renunciou ao trono de São Pedro. A Igreja Católica ficou à deriva, em meio a acusações de pedofilia e corrupção. Trinta dias depois, Francisco foi eleito para iniciar uma transformação no Vaticano. O momento histórico é retratado no filme “Dois Papas”, cotado para a disputa do Oscar.
A trama contrapõe o carrancudo Joseph Ratzinger ao bonachão Jorge Mario Bergoglio. Os diálogos são fictícios, mas resumem as diferenças entre o alemão e o argentino. A opinião é do teólogo Leonardo Boff, que conviveu de perto com os dois papas. “O filme não é um documentário, mas representa bem o que ambos pensam. Quem conhece teologia é capaz de identificar muitas coisas que eles escreveram e disseram publicamente”, elogia o ex-frade.
Para Boff, “Dois Papas” traduz ao grande público as diferenças entre duas concepções opostas da Igreja: a de Bento XVI, baseada na tradição e na hierarquia, e a de Francisco, mais aberta à evolução da sociedade. “Ratzinger não conseguia aceitar a diversidade. Bergoglio vê a Igreja como um hospital de campanha, aberto a todo mundo: pobres, refugiados, periféricos”, teoriza.
O teólogo define o período atual como uma “primavera” do catolicismo. “Francisco deslocou o eixo das instituições para o povo. É um papa que vê a desigualdade como problema a ser enfrentado e se coloca ao lado dos vencidos. O padrinho dessa visão não é Marx, é o Jesus histórico”, sustenta.
Parte da esquerda tem acusado o filme de distorcer a História para absolver Bergoglio das suspeitas de colaboração com a ditadura argentina (1976-83). Boff sai em defesa do Papa: “Ele não foi profético como Dom Hélder Câmara, mas nunca foi cúmplice dos militares e da tortura”.
O teólogo faz um reparo ao filme. Diz que a caracterização de Bento XVI como uma figura irascível, que chega a elevar a voz para o sucessor, não faz jus ao estilo sereno do alemão. “Ele é uma pessoa finíssima no trato, além de ser extremamente inteligente. Até lamento que o Fernando Meirelles não tenha conversado comigo antes de dirigir o filme....”, comenta.
O elogio soa surpreendente porque Ratzinger teve papel crucial no embate de Boff com o Vaticano. Em 1985, o alemão inquiriu o brasileiro sobre o livro “Igreja: Carisma e Poder”. A obra irritou a Cúria, que torcia o nariz para a Teologia da Libertação.
Ao fim do processo, o cardeal concluiu que as ideias do frade afrontavam as tradições e a hierarquia da Igreja. Boff perdeu a cátedra e foi condenado ao “silêncio obsequioso”. Hoje ele diz não guardar mágoas de Ratzinger. “Nunca perdemos a amizade. É preciso distinguir as pessoas das funções institucionais que elas exercem”, pontua.
Numa cena ambientada na Capela Sistina, os dois pontífices expõem seus dramas de consciência. Francisco admite que poderia ter se empenhado mais para livrar dois colegas da tortura. Bento XVI se penitencia pela omissão diante das denúncias de abuso sexual.
Para Boff, o diálogo é o ponto alto do filme. “Os dois são profundamente humanos, por isso têm sombras e luzes. Todos nós somos assim. Por que os papas não podem ser?”, questiona.
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