quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli* - Desigual por escolha

Valor Econômico

O Brasil escolheu democraticamente a estagnação e o favorecimento de grupos já privilegiados

Após a redemocratização, a sociedade brasileira decidiu implantar um amplo programa de assistência social envolvendo, entre outros, a saúde universal via SUS, a aposentadoria rural precoce (praticamente) não contributiva (9,5 milhões de beneficiados), o Benefício de Prestação Continuada (totalmente) não contributivo (4,7 milhões), e o Bolsa Família (21,3 milhões). Em 2008, criou-se o MEI cuja contribuição simbólica para o INSS é de apenas 5% do salário mínimo (13,2 milhões de participantes), mas assegurará um salário mínimo de aposentadoria a seus aderentes.

O custeio desses programas se fez via aumento da carga tributária federal, que passou de 15% do PIB em 1991 para 20% em 2000, chegou a atingir 23% em 2007 à véspera da crise do subprime, tendo se estabilizado em 20%. As principais fontes são: a alta contribuição patronal sobre a folha salarial, que estimula a informalidade do trabalho; a elevada tributação sobre lucros de empresas, que desestimula investimentos; além de outros pesados impostos federais (PIS, Cofins e IPI) que encarecem o custo de vida de toda a população.

Para que programas sociais ambiciosos sejam sustentáveis, é preciso que seu alto custo seja distribuído sobre o maior número possível de contribuintes. Quando todos pagam, o peso sobre cada um diminui, viabilizando sua manutenção. Mas no Brasil os setores bem articulados politicamente têm logrado se esquivar da parte da conta que lhes caberia. O imposto pago a menos por um setor será pago a mais por outro. Se a conta não for jogada sobre outro setor, significará maior déficit público, maior emissão de dívida pública, maiores juros, inibindo-se investimentos e a geração de empregos.

A conquista de um privilégio baseia-se numa ardilosa ação dupla. Primeiro, apresenta-se uma pseudo-justificativa que emociona o coração de incautos, mas agride o cérebro de quem se dá ao trabalho de analisar racionalmente o assunto. Em seguida, fixa-se um prazo de validade do privilégio, a fim de facilitar sua imediata aprovação, já se sabendo de antemão que quando o fim do prazo for atingido, será renovado, devido à mesma capacidade de pressão que permitiu sua obtenção originalmente.

A desoneração sobre a folha salarial, implantada por Dilma em 2012 para vigorar por dois anos, visava preservar empregos em setores escolhidos por critérios escusos. Mas os empregos destruídos em outros setores que sofreram as consequências - devido, por exemplo, a juros maiores decorrentes do aumento do déficit público - foram ignorados. Estimativas do custo unitário da desoneração indicam um valor superior ao salário médio pago, de modo que o grande beneficiado foi a empresa, não o trabalhador. A desoneração foi renovada sucessivamente desde então, sendo a mais recente renovação até 2027. No Brasil, nada é mais permanente que uma exceção temporária.

A teoria econômica identifica situações especiais - denominadas falhas de mercado - em que a boa alocação de recursos justifica o Estado instituir uma proteção - via subsídio, regime tributário diferenciado, ou proteção tarifária. Mas sempre como uma política temporária, sujeita a frequente reavaliação de seus custos e benefícios, e com transparência para que a sociedade possa questionar se a política se justifica, quando comparada a outras alternativas de uso dos recursos.

O subsídio ideal é aquele que não se esconde. Em vez de uma isenção tributária, a empresa recolhe o imposto, mas é ressarcida em seguida pelo Tesouro; em vez de uma taxa de juros reduzida, a empresa paga a taxa de mercado, mas recebe uma transferência do Tesouro que equivale ao subsídio. Dessa forma, o custo do subsídio aparece claramente na lei orçamentária todos os anos, quando a legítima disputa por recursos públicos se faz no Congresso.

Mas os beneficiários de tratamentos especiais odeiam a transparência. Preferem encastrá-los na lei, de preferência na Constituição. Foi assim na recente tramitação da reforma tributária. Os grupos de pressão conseguiram emplacar alíquotas diferenciadas do IVA que beneficiam a hotelaria, bares e restaurantes, taxistas, produções culturais, artísticas, audiovisuais e jornalísticas. O agronegócio conseguiu 60% de redução de alíquota no que for consumido domesticamente, isto num setor em que a exportação - que é totalmente isenta de IVA - tem enorme peso. Também os serviços de profissionais liberais - advogados, consultores econômicos, médicos, arquitetos, entre outros -, que são comprados por empresas ou por pessoas físicas de alta renda, conquistaram redução de 30%.

Existem estudos que mostram que alguns (poucos) setores podem perder com a reforma. Nenhum dos citados acima está entre eles. O resultado disso tudo é que se terá, provavelmente, a maior alíquota (básica) de IVA do mundo, estimada pelo governo em 27,5%.

Não é à toa que o Brasil está estagnado há quatro décadas e possui uma das maiores desigualdades do planeta. Essas chagas são consequência direta de decisões tomadas já em ambiente democrático, por políticos eleitos em voto universal secreto. O Brasil escolheu democraticamente a estagnação e, nos casos aqui discutidos, favorecer grupos já privilegiados.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento

Renato Fragelli Cardoso é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (EPGE-FGV).

Um comentário:

Daniel disse...

Exatamente! Entre os beneficiados, a grande mídia, que divulga as opiniões dos colunistas que apoiam as reduções de impostos deste setor. Como sempre, a liberdade (libertinagem) da EMPRESA abusando da liberdade de expressão.