Folha de S. Paulo
Finalmente, ao menos por algum tempo, um
sopro de vida percorre as sociedades israelense e palestina
Netanyahu transformou o veto a um Estado
Palestino na sua razão política de existir
As bombas já não caem sobre Gaza. Reféns israelenses e prisioneiros palestinos, todos alquebrados, retornam a suas famílias. Triunfou a primeira etapa do plano de paz de Trump, mas a paz segue distante. No mapa sinuoso que conduz a ela, destacam-se dois rochedos íngremes. O primeiro, que já se avista, é a exigência de deposição das armas do Hamas. O segundo, lá longe, no fim do caminho, é o acordo de autodeterminação estatal palestina.
O cessar-fogo com intercâmbio de cativos
assinala uma dupla derrota, de Netanyahu e do Hamas. Trump forçou Netanyahu a
renunciar à limpeza étnica e à anexação da Faixa de Gaza,
programa maximalista de seus ministros extremistas que tornou-se objetivo
explícito de seu governo criminoso. A Turquia, o Qatar, o Egito e os demais
países árabes engajados no plano impuseram aos líderes exilados do Hamas a
decisão de entregar os reféns, que funcionavam como trunfo derradeiro dos
líderes terroristas em Gaza. Finalmente, ao menos por algum tempo, um sopro de
vida percorre as sociedades israelense e palestina.
A celebração tem fôlego curto. O passo
seguinte envolve o desarmamento do Hamas, em troca de paulatinas retiradas
israelenses até um "perímetro de segurança" na borda da Faixa de
Gaza. A bola fica no campo da organização fundamentalista, pois as armas
converteram-se na sua fonte remanescente de influência política.
O Hamas suplantou o Fatah de Mahmoud Abbas
nas eleições ao conselho de governo autônomo de Gaza, em 2005. Hoje, porém, os
palestinos desprezam igualmente as duas facções. A catástrofe provocada pelos
atentados do 7 de Outubro suprimiu o que restava da legitimidade do Hamas. Sem
as armas, que juraram conservar até a proclamação de um Estado Palestino, os
fundamentalistas experimentarão inexorável declínio.
O plano prevê anistia aos combatentes que
depuserem as armas ou a alternativa do exílio. Difícil imaginar que o Hamas
aceite qualquer dessas hipóteses. De qualquer modo, restariam fragmentos
rejeicionistas armados, o que fornecerá álibis a Netanyahu e seus extremistas
para retomar o programa genocida. A saída, que depende de Trump e dos países
árabes, encontra-se numa força internacional de estabilização disposta a
eliminar as milícias restantes.
No intercâmbio de reféns por prisioneiros,
Netanyahu resistiu à libertação de Marwan Barghouti, que apodrece num calabouço
desde 2002. Há pouco, num espetáculo de covardia, o ministro extremista Itamar
Ben-Gvir assediou Barghouti em sua cela e publicou um vídeo do ato sórdido. O
pretexto para resistir à soltura do único líder palestino que conta com amplo
apoio popular é a controversa condenação por sua suposta responsabilidade em
atos de terror. O motivo verdadeiro é a férrea fidelidade de Barghouti ao princípio
da paz em dois Estados.
O rochedo do fim do caminho chama-se Estado
Palestino. Uma Autoridade Palestina liderada por Barghouti teria suficiente
legitimidade política para negociar as dolorosas concessões indispensáveis à
paz. Mas, contrariando as promessas de seus predecessores de direita ou
esquerda, Netanyahu transformou o veto a um Estado Palestino na sua razão
política de existir.
O plano de Trump nunca teria saído do papel sem a luz no fim do caminho. Terá o presidente americano a persistência e a clareza para impor a paz a Netanyahu?
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