sábado, 11 de outubro de 2025

Onde você mora. Por Flávia Oliveira

O Globo

A falta de endereçamento atrapalha o acesso a serviços de saúde, educação e políticas sociais

Foi nos anos 2010 que as organizações Redes da Maré e Observatório de Favelas provocaram o poder municipal pela organização cartográfica da Maré. A partir de foto fornecida pelo Instituto Pereira Passos, espécie de IBGE carioca, demarcaram limites, avenidas, ruas, becos e vielas das 16 favelas que formam o bairro, reconhecido como tal em 1994 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Só então as comunidades puderam, literalmente, entrar no mapa da capital fluminense. O Guia de Ruas da Maré 2012 identificou cerca de 900 logradouros; um quarto não tinha Código de Endereçamento Postal (CEP), a combinação numérica que identifica áreas geográficas para localização rápida e eficiente.

O projeto na Maré chamou a atenção para uma dimensão pouco destacada, mas não menos importante, da inclusão social, da cidadania, da dignidade humana. Endereço é indicador de desigualdade. Facilita a vida de quem tem; torna invisíveis os que não. A falta de endereçamento atrapalha o acesso a serviços de saúde, educação e políticas sociais. Não dá para receber o agente de saúde, o médico de família. É difícil matricular a criança na escola; impossível receber correspondência, compra ou encomenda. A simples inscrição em processos seletivos e concursos ou a abertura de uma conta bancária ficam em risco.

— Casas e ruas fazem parte da história cotidiana das pessoas e da geografia da cidade. Por isso seu registro cartográfico é indispensável. E, no caso das favelas, uma dimensão política da maior relevância. Estar no mapa é ter uma marcação gravada, é ter o território reconhecido. Nossas ruas são endereços de nossas moradas. É o lugar onde nossas vidas acontecem, repousam e encontram outras vidas. Por isso é imprescindível que sejam identificadas, nomeadas e gravadas no mapa — ensina o Guia da Maré.

Nesta semana, o governo federal anunciou que todas as favelas e comunidades urbanas localizadas pelo IBGE no Censo Demográfico 2022 terão, pelo menos, um CEP. Os 12.348 territórios distribuídos em 656 municípios brasileiros abrigam 16,3 milhões de brasileiros, quase um décimo da população; sete em cada dez são pretos ou pardos. No ano passado, o IBGE já havia decidido abandonar a expressão aglomerados subnormais, adotada desde 1991 para designar as áreas habitacionais caracterizadas por insegurança jurídica na posse; ausência, oferta precária ou incompleta de serviços públicos; padrões urbanísticos fora da ordem vigente; e ocupação de áreas com restrição.

Na ação do Ministério das Cidades em parceria com a pasta das Comunicações e com os Correios, cada localidade ganhou um CEP. A próxima etapa é mapear ruas, travessas e vielas de ao menos 300 comunidades, para que cada logradouro tenha o próprio código de endereçamento. Uma centena de favelas, na sequência, ganhará posto ou agência dos Correios. O anúncio foi celebrado por líderes comunitários, moradores, organizações sociais e pesquisadores:

— O não reconhecimento de endereços prejudica profundamente o cotidiano de milhões de pessoas, que têm dificuldade de ter acesso a mercadorias, numa economia cada vez mais digital. Garantir CEP é efetivar um direito pleno de cidadania —diz o geógrafo Jailson de Souza e Silva, diretor-geral do Instituto Comum Viver e conselheiro do Observatório de Favelas.

Ele participou, com Eliana Sousa Silva, do projeto cartográfico que, quase uma década e meia depois, aparece como referência na ação governamental. No Rio, o domínio de territórios por facções do tráfico de drogas e da milícia costuma ser apontado como entrave a direitos assegurados em outras áreas da cidade — como endereço, CEP, entrega de encomendas. A diretora da Redes da Maré rebate:

— Muitos pensam que a presença de grupos civis armados é capaz de limitar o ordenamento dos endereços nas favelas do Rio. Mas a verdade é que esse direito nunca foi uma demanda para o poder público nem para as concessionárias de serviços. Historicamente, nunca foi prioridade. O que falta é disposição, mediação política. Falta compreender a quem essas políticas são endereçadas e que elas são urgentes.

O IBGE estima que cerca de 280 mil endereços em favelas e comunidades têm fragilidade. São locais sem nome de rua e/ou numeração, em que vivem 870 mil brasileiros. Quase metade (48,7%) das favelas do país fica no Sudeste. À frente, São Paulo e Rio, com respectivamente, 3.123 e 1.724 comunidades. No Estado do Rio, 2,142 milhões moram em favelas, 13,3% dos habitantes.

Das cinco maiores comunidades do país, três ficam em solo carioca. A Rocinha, na Zona Sul, a maior do país, tem 72.017 moradores, segundo o IBGE. Rio das Pedras, na recém-batizada Zona Sudoeste da capital, soma 55.653. Entre as duas estão Sol Nascente (Brasília), com 70.908; Paraisópolis (São Paulo), 58.527; e Cidade de Deus/Alfredo Nascimento (Manaus), 55.821. O CEP em cada logradouro é reparação devida há muito a quem vive nas favelas. Uma peça bem-vinda no quebra-cabeça de direitos sonegados no país marcado pela desigualdade.

 

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