O Globo
A falta de endereçamento atrapalha o acesso a
serviços de saúde, educação e políticas sociais
Foi nos anos 2010 que as organizações Redes da Maré e Observatório de Favelas provocaram o poder municipal pela organização cartográfica da Maré. A partir de foto fornecida pelo Instituto Pereira Passos, espécie de IBGE carioca, demarcaram limites, avenidas, ruas, becos e vielas das 16 favelas que formam o bairro, reconhecido como tal em 1994 pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Só então as comunidades puderam, literalmente, entrar no mapa da capital fluminense. O Guia de Ruas da Maré 2012 identificou cerca de 900 logradouros; um quarto não tinha Código de Endereçamento Postal (CEP), a combinação numérica que identifica áreas geográficas para localização rápida e eficiente.
O projeto na Maré chamou a atenção para uma
dimensão pouco destacada, mas não menos importante, da inclusão social, da
cidadania, da dignidade humana. Endereço é indicador de desigualdade. Facilita
a vida de quem tem; torna invisíveis os que não. A falta de endereçamento atrapalha
o acesso a serviços de saúde, educação e políticas sociais. Não dá para receber
o agente de saúde, o médico de família. É difícil matricular a criança na
escola; impossível receber correspondência, compra ou encomenda. A simples
inscrição em processos seletivos e concursos ou a abertura de uma conta
bancária ficam em risco.
— Casas e ruas fazem parte da história
cotidiana das pessoas e da geografia da cidade. Por isso seu registro
cartográfico é indispensável. E, no caso das favelas, uma dimensão política da
maior relevância. Estar no mapa é ter uma marcação gravada, é ter o território
reconhecido. Nossas ruas são endereços de nossas moradas. É o lugar onde nossas
vidas acontecem, repousam e encontram outras vidas. Por isso é imprescindível
que sejam identificadas, nomeadas e gravadas no mapa — ensina o Guia da Maré.
Nesta semana, o governo federal anunciou que
todas as favelas e comunidades urbanas localizadas pelo IBGE no Censo
Demográfico 2022 terão, pelo menos, um CEP. Os 12.348 territórios distribuídos
em 656 municípios brasileiros abrigam 16,3 milhões de brasileiros, quase um
décimo da população; sete em cada dez são pretos ou pardos. No ano passado, o
IBGE já havia decidido abandonar a expressão aglomerados subnormais, adotada
desde 1991 para designar as áreas habitacionais caracterizadas por insegurança
jurídica na posse; ausência, oferta precária ou incompleta de serviços
públicos; padrões urbanísticos fora da ordem vigente; e ocupação de áreas com
restrição.
Na ação do Ministério das Cidades em parceria
com a pasta das Comunicações e com os Correios, cada localidade ganhou um CEP.
A próxima etapa é mapear ruas, travessas e vielas de ao menos 300 comunidades,
para que cada logradouro tenha o próprio código de endereçamento. Uma centena
de favelas, na sequência, ganhará posto ou agência dos Correios. O anúncio foi
celebrado por líderes comunitários, moradores, organizações sociais e
pesquisadores:
— O não reconhecimento de endereços prejudica
profundamente o cotidiano de milhões de pessoas, que têm dificuldade de ter
acesso a mercadorias, numa economia cada vez mais digital. Garantir CEP é
efetivar um direito pleno de cidadania —diz o geógrafo Jailson de Souza e
Silva, diretor-geral do Instituto Comum Viver e conselheiro do Observatório de
Favelas.
Ele participou, com Eliana Sousa Silva, do
projeto cartográfico que, quase uma década e meia depois, aparece como
referência na ação governamental. No Rio, o domínio de territórios por facções
do tráfico de drogas e da milícia costuma ser apontado como entrave a direitos
assegurados em outras áreas da cidade — como endereço, CEP, entrega de
encomendas. A diretora da Redes da Maré rebate:
— Muitos pensam que a presença de grupos
civis armados é capaz de limitar o ordenamento dos endereços nas favelas do
Rio. Mas a verdade é que esse direito nunca foi uma demanda para o poder
público nem para as concessionárias de serviços. Historicamente, nunca foi
prioridade. O que falta é disposição, mediação política. Falta compreender a
quem essas políticas são endereçadas e que elas são urgentes.
O IBGE estima que cerca de 280 mil endereços
em favelas e comunidades têm fragilidade. São locais sem nome de rua e/ou
numeração, em que vivem 870 mil brasileiros. Quase metade (48,7%) das favelas
do país fica no Sudeste. À frente, São Paulo e Rio, com respectivamente, 3.123
e 1.724 comunidades. No Estado do Rio, 2,142 milhões moram em favelas, 13,3%
dos habitantes.
Das cinco maiores comunidades do país, três
ficam em solo carioca. A Rocinha, na Zona Sul, a maior do país, tem 72.017
moradores, segundo o IBGE. Rio das Pedras, na recém-batizada Zona Sudoeste da
capital, soma 55.653. Entre as duas estão Sol Nascente (Brasília), com 70.908;
Paraisópolis (São Paulo), 58.527; e Cidade de Deus/Alfredo Nascimento (Manaus),
55.821. O CEP em cada logradouro é reparação devida há muito a quem vive nas
favelas. Uma peça bem-vinda no quebra-cabeça de direitos sonegados no país
marcado pela desigualdade.
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