sábado, 11 de outubro de 2025

Nosso amargo legado. Por Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo

Sem mudanças profundas nas instituições, mentalidades e comportamentos, a perspectiva será um crescimento econômico médio anual de 2,5%

De onde menos se espera – assim reza o ditado popular – é que não vem mesmo nada. Essa é uma das conclusões que poderíamos extrair do excelente texto intitulado Sistema disfuncional, publicado neste espaço pelo jurista Miguel Reale Júnior (4/10, A6). Eis como ele sintetiza sua reflexão sobre nossa trajetória política desde o começo da República: “O presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre (os) Poderes”.

Contrapesos no estrito sentido institucional nós tivemos, claro, desde o Poder Moderador estatuído pela Constituição de 1824, e nas posteriormente elaboradas em regimes democráticos, que sempre consagraram o modelo tripartite de Montesquieu. O problema, como bem assinala o professor Reale Júnior, é que nem o Poder Moderador do período monárquico nem o Supremo Tribunal Federal (STF), no republicano, atingiram o objetivo de conter os excessos do Executivo, do Legislativo e até, por vezes, algumas embutidas em ações isoladas de partidos políticos. Foi Rui Barbosa quem mais afirmativamente supôs que o STF pudesse cumprir de forma efetiva a função de “moderar” os conflitos políticos e os sempre presentes apetites de diferentes protagonistas da vida pública. Infelizmente, os incessantes embates que observamos no passado recente evidenciam que a aspiração de Rui Barbosa não tinha o lastro por ele imaginado; teria, talvez, se fosse uma Corte estritamente constitucional, mas não na amplitude que assumiu, como ápice do sistema Judiciário, em nossa experiência republicana.

A questão que me permito suscitar, como complemento à reflexão do dr. Reale, é se o problema não estará no próprio regime presidencialista. Cabe lembrar aqui uma avaliação feita em 1970 (no livro L’Échec au Roi) pelo mestre francês Maurice Duverger: “O sistema presidencial de governo – escreveu ele – só funciona nos Estados Unidos. Em outros países ele sempre degenerou em presidencialismo, ou seja, em ditadura”. Ressaltese que tal afirmação foi feita 46 anos antes da chegada de Donald Trump à Casa Branca; jamais saberemos se Duverger a reiteraria precisamente dessa forma nos dias de hoje.

No passado recente, mesmo antes do surgimento de Donald Trump, muitos autores importantes começaram a explorar os fatores que sempre dificultaram o funcionamento dos sistemas presidenciais fora dos Estados Unidos e, notadamente, na América Latina. No Brasil, um fator que salta aos olhos é a extrema fragilidade e fragmentação de nossas estruturas partidárias. A verdade é que o Brasil nunca teve, não tem atualmente e não é certo que venha a ter no futuro partidos políticos consistentes, responsáveis e de fato representativos perante seus supostos representados. Organizamos, com inegável êxito, a base sine qua non da democracia na acepção moderna do termo: a ampliação do sufrágio. Hoje, o eleitorado, tomado como proporção da população total, equivale a 72%, cifra praticamente idêntica à dos países economicamente mais avançados.

Tão grave quanto a inconsistência programática e o caráter oligárquico de sua organização interna é o fato de que, entre nós, deficientes não têm sido apenas partidos individuais, mas os próprios sistemas partidários. Essa característica tem a ver com a manifesta descontinuidade histórica de tais sistemas. A República extinguiu os partidos do período monárquico; o golpe armado encabeçado por Getúlio Vargas em 1930 extinguiu os partidos ditos “republicanos” da Primeira República, que, na realidade, não passavam de partidos únicos estaduais, mantidos em rédea curta pelos governadores, e o regime ditatorial instituído em 1937 impediu pura e simplesmente a organização da sociedade em partidos. Na mesma linha, o golpe militar de 1964 extinguiu os partidos que se haviam formado sob a Constituição de 1946, substituindo-os, nos termos do Ato Institucional número 2, por duas “organizações provisórias”, que viriam a ser a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O governador Franco Montoro pitorescamente se referia ao primeiro como o partido “do sim” e ao segundo como o partido do “sim, senhor”. Mas o agudo escárnio de Montoro revelou-se equivocado, em grande parte graças a seus próprios esforços, tornandose de fato o principal veículo da redemocratização, conquistada no próprio Colégio Eleitoral que a corporação militar instituiu com o objetivo de impedir a ascensão de forças oposicionistas à Presidência da República.

O apanhado acima ajuda a compreender por que o Estado patrimonialista reinou soberano durante quase dois séculos até se desintegrar, deixando-nos o amargo legado dos “mensalões”, “petrolões” e “centrões”. Dado esse quadro, existe base para alguma esperança? Sim, existe. É uma questão de sobrevivência. Sem mudanças profundas nas instituições, mentalidades e comportamentos, a perspectiva será um crescimento econômico médio anual de 2,5%, significando nossa virtual inviabilidade como país. É pegar ou largar. Simples assim.

 

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