O PASSADO JÁ PASSOU?
Alberto Dines
Com uma pérola litero-filosófica o ministro da Defesa, Nelson Jobim, pretendia enterrar o debate sobre a revisão da Lei da Anistia. "O passado já passou", pontificou e com isso tentava diminuir as novas tensões produzidas a respeito dos Anos de Chumbo.
O ministro cometeu pelo menos dois deslizes: o pretérito não é um vazio, nem é oco, é apenas um estado anterior ao momento em que se está. Seu potencial de energia não pode ser esvaziado. Quem intempestivamente tirou do armário a questão da tortura e dos torturadores foi o seu colega da Justiça, Tarso Genro. Mas como ministros não podem confrontar-se em público, a culpada é a de sempre, a imprensa.
Basta olhar a primeira página dos jornais de ontem, hoje e amanhã para verificar que o passado não passou, nem está extinto. É real, palpitante. Às vezes sossega, mas vive, como um vulcão inativo. Cada lance do noticiário é uma remissão ao já acontecido.
O esforço da China nesta Olimpíada para igualar-se ao Ocidente nada tem a ver com uma disputa ideológica, é um empenho nacional para superar velhas frustrações e humilhações que remontam às Guerras do Ópio em meados do século 19 (1839-42 e 1856-60).
A questão das algemas que apaixona nossos juristas é outra prova da inabalável persistência de velhos problemas. A grande verdade é que perdemos a guerra contra a corrupção tanto no campo moral como penal e, para não encarar a cruel realidade, nos divertimos com bizantinices e eufemismos forenses.
A mais cabal contestação da teoria jobiniana a respeito da anulação do passado é oferecida pela nova catástrofe bélica nos confins do Velho Mundo. O passado insepulto foi o protagonista do banho de sangue nos Bálcãs. Novamente esquecido reaparece no Cáucaso. A Geórgia, enquanto Estado organizado, enfrentou a pressão imperialista da Rússia desde os tempos de Catarina, a Grande (1783).
A resistência georgiana remonta aos primeiros séculos da Era Comum com a adoção de um alfabeto próprio e uma rica produção literária. Na antiga URSS, a República da Gruzínia manteve a sua identidade e depois da Perestroika, graças à presença do georgiano Eduard Shevardnadze ao lado de Gorbachiov, consolidou-se como ente nacional. Em 1991 chegou a suprimir a autonomia da Ossétia do Sul e da Abkhazia, antigos enclaves russos, experiência que tentou reeditar agora.
São venerandas as queixas paraguaias contra o Brasil e não se resumem às magras tarifas que pagamos pela energia de Itaipu. Nesta sexta-feira, ao comparecer à posse do ex-bispo Fernando Lugo, o presidente Lula foi cobrado nas ruas de Assunção por populares. Ninguém lembrou da Guerra do Paraguai (como aqui a conhecemos), ou a Grande Guerra como é chamada pelos antigos adversários ou Guerra da Tríplice Aliança (como é conhecida na Argentina e Uruguai).
O maior conflito internacional no Novo Mundo (1864-1870) derrubou o caudilho Solano Lopes e devastou o Paraguai, morreram 300 mil soldados e até hoje o país ressente-se do desbalanceamento demográfico. A sobrevivência da oligarquia dos colorados que o novo presidente veio interromper é, em grande parte, atribuída ao Brasil. Trata-se de um passado que, para os paraguaios, ainda não passou.
Um pouco mais de história e mais cuidado com as blagues são de grande utilidade aos aprendizes de política. Ao rever as razões que levaram a França e Alemanha a engalfinharem-se três vezes ao longo de 69 anos seus dirigentes produziram os acordos iniciais que culminaram com a criação da União Européia, experiência supranacional única na história da humanidade.
O passado não pode ser sepultado nem passado a limpo. Ignorá-lo leva às repetições (como disse George Santayana), remoê-lo, agarrar-se a ele, leva ao revanchismo.
Déspotas abominam a memória, também os oportunistas. Com o passado convive-se. E se aprende.
» Alberto Dines é jornalista.
Alberto Dines
Com uma pérola litero-filosófica o ministro da Defesa, Nelson Jobim, pretendia enterrar o debate sobre a revisão da Lei da Anistia. "O passado já passou", pontificou e com isso tentava diminuir as novas tensões produzidas a respeito dos Anos de Chumbo.
O ministro cometeu pelo menos dois deslizes: o pretérito não é um vazio, nem é oco, é apenas um estado anterior ao momento em que se está. Seu potencial de energia não pode ser esvaziado. Quem intempestivamente tirou do armário a questão da tortura e dos torturadores foi o seu colega da Justiça, Tarso Genro. Mas como ministros não podem confrontar-se em público, a culpada é a de sempre, a imprensa.
Basta olhar a primeira página dos jornais de ontem, hoje e amanhã para verificar que o passado não passou, nem está extinto. É real, palpitante. Às vezes sossega, mas vive, como um vulcão inativo. Cada lance do noticiário é uma remissão ao já acontecido.
O esforço da China nesta Olimpíada para igualar-se ao Ocidente nada tem a ver com uma disputa ideológica, é um empenho nacional para superar velhas frustrações e humilhações que remontam às Guerras do Ópio em meados do século 19 (1839-42 e 1856-60).
A questão das algemas que apaixona nossos juristas é outra prova da inabalável persistência de velhos problemas. A grande verdade é que perdemos a guerra contra a corrupção tanto no campo moral como penal e, para não encarar a cruel realidade, nos divertimos com bizantinices e eufemismos forenses.
A mais cabal contestação da teoria jobiniana a respeito da anulação do passado é oferecida pela nova catástrofe bélica nos confins do Velho Mundo. O passado insepulto foi o protagonista do banho de sangue nos Bálcãs. Novamente esquecido reaparece no Cáucaso. A Geórgia, enquanto Estado organizado, enfrentou a pressão imperialista da Rússia desde os tempos de Catarina, a Grande (1783).
A resistência georgiana remonta aos primeiros séculos da Era Comum com a adoção de um alfabeto próprio e uma rica produção literária. Na antiga URSS, a República da Gruzínia manteve a sua identidade e depois da Perestroika, graças à presença do georgiano Eduard Shevardnadze ao lado de Gorbachiov, consolidou-se como ente nacional. Em 1991 chegou a suprimir a autonomia da Ossétia do Sul e da Abkhazia, antigos enclaves russos, experiência que tentou reeditar agora.
São venerandas as queixas paraguaias contra o Brasil e não se resumem às magras tarifas que pagamos pela energia de Itaipu. Nesta sexta-feira, ao comparecer à posse do ex-bispo Fernando Lugo, o presidente Lula foi cobrado nas ruas de Assunção por populares. Ninguém lembrou da Guerra do Paraguai (como aqui a conhecemos), ou a Grande Guerra como é chamada pelos antigos adversários ou Guerra da Tríplice Aliança (como é conhecida na Argentina e Uruguai).
O maior conflito internacional no Novo Mundo (1864-1870) derrubou o caudilho Solano Lopes e devastou o Paraguai, morreram 300 mil soldados e até hoje o país ressente-se do desbalanceamento demográfico. A sobrevivência da oligarquia dos colorados que o novo presidente veio interromper é, em grande parte, atribuída ao Brasil. Trata-se de um passado que, para os paraguaios, ainda não passou.
Um pouco mais de história e mais cuidado com as blagues são de grande utilidade aos aprendizes de política. Ao rever as razões que levaram a França e Alemanha a engalfinharem-se três vezes ao longo de 69 anos seus dirigentes produziram os acordos iniciais que culminaram com a criação da União Européia, experiência supranacional única na história da humanidade.
O passado não pode ser sepultado nem passado a limpo. Ignorá-lo leva às repetições (como disse George Santayana), remoê-lo, agarrar-se a ele, leva ao revanchismo.
Déspotas abominam a memória, também os oportunistas. Com o passado convive-se. E se aprende.
» Alberto Dines é jornalista.
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