Em novo livro, ex-ministro investiga permanência de herança ibérica no Brasil
Cassiano Elek Machado
RIO - Francisco Weffort passou os últimos anos vivendo no século 16. E esteve por lá em busca dos anos 1930.
A máquina do tempo do cientista político e ex-ministro da Cultura não está quebrada. Seguindo as raízes do Brasil, ele procurava realizar um retrato do país na mesma linha dos que pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987) publicaram no início do século 20.
"Espada, Cobiça e Fé - As Origens do Brasil" (Civilização Brasileira, R$ 39,90, 240 págs.), que ele acaba de publicar, foi o resultado destas expedições.
Os três elementos elencados no título são, na ótica de Weffort, 75, vetores essenciais da atuação de portugueses e espanhóis na descoberta (ou conquista, como dizem os hispânicos) da América.
"Nos ambientes europeus em que se formaram, a fé em Deus podia conviver com uma noção de honra e de poder que não excluía a cobiça e a busca do enriquecimento rápido", escreve Weffort. "Sua profunda religiosidade era parte de uma cultura na qual a violência na vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais."
O tripé espada, cobiça e fé, que marcou a atuação dos ibéricos em Terra Brasilis, teria deixado traços profundos no caráter brasileiro.
Para tratar destes temas, e de como eles estão ligados a acontecimentos recentes no país, Weffort recebeu a Folha para uma conversa em seu apartamento, no Rio. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - O seu novo livro é uma busca das raízes do país. O que o sr. encontrou de mais desagradável em nossas raízes?encontrou de mais desagradável em nossas raízes?
Francisco Weffort - Não diria uma coisa só, mas a descoberta ou a conquista do Brasil foi um difícil processo de reconhecimento do povo brasileiro. Levou séculos e se prolongou numa cultura preconceituosa. Os europeus que chegavam aqui, mesmo os padres, que foram os que mais defenderam índios e negros contra injustiças, não tinham a ideia do que era este povo. Estavam desinteressados do tema da humanidade dos negros, por exemplo. O padre Vieira, quando foi consultado sobre o que fazer com o Quilombo dos Palmares, disse que se déssemos liberdade aos negros de lá seríamos obrigados a fazer o mesmo com todos os negros da colônia, o que inviabilizaria a colonização.
No livro, o sr. diz que o Renascimento ibérico se expressava mais na conquista do mundo do que na arte. De que modo a falta de valorização da cultura reflete nosso desinteresse na área?
A tradição ibérica é a da prática, do fazer. No campo das ciências humanas, por exemplo, temos belos historiadores, magníficos ensaístas, mas muito pouca teoria. A capacidade prática deste país de fazer sem saber é enorme. Uma vez conversei com uma figura importante na construção de Brasília. Ele comentava que tinham medo que o lago não enchesse, que as árvores não crescessem. Quase perguntei por que fizeram Brasília aqui. Eles eram de uma grande audácia e de uma enorme ignorância, mas fizeram uma imensa cidade.
Um tema importante no livro é a atuação dos bandeirantes. Eles são a melhor personificação da "audácia ignorante"?
Comecei a fazer o livro preocupado com este tema. Sei que os bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los.
O livro ilumina um lado menos conhecido dos bandeirantes, que foi a atuação deles na Bahia. Por que esse capítulo é tão desconhecido?
Existe uma ideia de que os bandeirantes foram só paulistas. Os baianos foram os primeiros. O que é notável é que foram atrás de tesouros por conta das descobertas de riquezas pelos espanhóis no outro lado da América. Se havia lá, deveria haver aqui. Eles não sabiam nada. Mas foram de coragem espantosa.
Outro traço que seu livro acentua ter vindo das raízes ibéricas é a violência...
Os conquistadores construíram o germe de estrutura hierárquica que acompanhou a formação do país nos séculos que se seguiram.Você tinha o monarca, depois os militares que o representavam. A sequência clara disso foi a Guarda Nacional do Império, os coronéis do Nordeste. Até o século 19, o Brasil teve tanta violência que este estilo persiste até hoje.
Como a violência ancestral ressoa no cenário atual?
Não acredito que o crime organizado seja uma projeção da violência daquela época, mas certamente a capacidade que estes grupos marginais têm de produzir violência de maneira organizada tem a ver com esta história. Eles não são finlandeses ou suecos, são como nós. Uma coisa importante é esta dualidade entre os que estão dentro e os que estão fora. No Rio, a grande manobra política recente foi a de expulsar os bandidos que estavam dentro da comunidade. Esta dualidade, os de dentro e os de fora, os civilizados e os bárbaros, está o tempo todo na cabeça do brasileiro.
E qual o papel do personalismo ibérico nisso?
O personalismo é uma dimensão fundamental de nossa identidade. Nós nos reconhecemos de pessoa a pessoa. Na cultura, isso fica claro. Entre nós, quem fala é porque tem algo a expressar do meio pessoal. Por isso você tem aqui artistas que falam sobre qualquer tema: futebol, cinema, guerra.
Numa entrevista anterior o sr. evocou as raízes ibéricas para comentar a formação das instituições políticas brasileiras. O sr. dizia que não havia partidos, só personalismos. O Brasil tem como mudar esta tradição?
O Brasil está mudando. A época atual, não estou falando em governo atual, é de avanços. Quando falo em época, estou me referindo ao pós-1950. É uma época de democratização do Brasil.
E, veja, isso inclui um período de ditadura, mas é democratização no sentido social. O número de pessoas nas cidades, de alfabetizados, de pessoas que expressam algo aumentou na escala de milhões.
Mas e os partidos?
Os partidos... [silêncio]. Em alguns casos, as instituições são mais frágeis do que o crescimento democrático. Isso porque o crescimento democrático também alimenta os personalismos. O Lula é um fenômeno do personalismo. Mas é óbvio que ele é um fenômeno da democracia. É um problema típico da construção das instituições políticas. Se pegarmos uma escala de século, veremos o crescimento das instituições. O que está ocorrendo no Brasil hoje, por exemplo no Supremo Tribunal Federal, era impensável há 50 anos.
Mas no seu livro o sr. fala da "subvalorização das normas e leis, típica da cultura brasileira e hispano-americana em geral"...
Em termos gerais, isso ainda é verdade. Nós tendemos a ter dificuldade para aceitar que a lei tem de ser cumprida. Fulano vai ser preso?, perguntam. Claro, tem de cumprir a lei. A ideia de que é preciso cumprir um princípio abstrato para nós é difícil. Mas cada vez mais vamos aceitando.
A corrupção é herança do tripé fé, espada e cobiça?
Não. As pessoas às vezes projetam uma imagem errada de que o Brasil nasceu de gente sem caráter, de ladrões. Não acho que aqui haja mais corrupção do que em outros lugares. Temos um grau de corrupção coerente com o tamanho do país, que é enorme [risos]. Mas não creio que haja complacência com isso.
Fenômenos como o mensalão não surpreendem o sr.?
Se me permite, não vou discutir o mensalão. O que me parece surpreendente é como a opinião pública e o sistema judiciário estão funcionando tão bem.
O sr. está otimista em relação ao Brasil?
Em relação à democracia no Brasil, sou otimista. Acho até que há uma certa continuidade entre o crescimento econômico da sociedade brasileira e o da participação democrática. É claro que no meio do caminho há muita trombada, botinada, ladrão. Mas democracia é isso.
E dentro dessa perspectiva positiva, o sr. vislumbra a volta a um cargo público?
Não vislumbro nada disso. O que gostaria agora seria pesquisar o corporativismo na sociedade brasileira. É um tema importante porque, no Brasil, quando você critica o corporativismo do outro, não lembra do seu. Nós todos somos corporativistas.
Em termos de gestão cultural, o sr. vê um aperfeiçoamento nos governos Lula e Dilma?
Eu dou uma opinião geral: está melhorando. O ponto de partida é o governo Collor, que foi péssimo nisso. De lá para cá, foi melhorando. E tem que melhorar, até porque, como diz o Tiririca, pior do que está não fica [risos]. Todos os sujeitos que entram no MinC têm ideias, teorias, mas querem mais gente pra trabalhar e mais recursos. Ainda é um tema fundamental. Porque estamos longe de ter esbanjamento em cultura.
Fonte: Folha de S. Paulo
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