Em 2014 completam-se cem anos do início da 1.ª Guerra Mundial. O conflito foi um divisor de épocas. Eric Hobsbawm, historiador inglês marxista, assinala-o como marco inaugural do "curto século 20". François Furet, historiador francês liberal, escreve que o mundo até ali existente morreu junto com os 15 milhões de pessoas vitimadas pela maior carnificina humana vista até então.
A 1.ª Guerra pôs fim ao "longo século 19", iniciado com a derrota de Napoleão, a formação da Santa Aliança, o fortalecimento da coalizão entre a burguesia industrial nascente e as aristocracias recicladas dos velhos regimes anteriores à Revolução Francesa. Na esteira da guerra, abriu-se a "Era dos Extremos", como Hobsbawm chamou o "curto século 20", marcado pela novidade histórica do aparecimento de sistemas totalitários, de signo oposto, o comunismo e o fascismo (não por acaso, o historiador inglês identifica no colapso da União Soviética o ato final do século passado).
É inegável que a Revolução Russa é filha da guerra de 1914-1918. Sem a ruína do Exército czarista e as privações provocadas pelo conflito os bolcheviques não teriam tomado o Palácio de Inverno em outubro de 1917. O filósofo e historiador francês Élie Halévy foi profético ao escrever, em meio à guerra: "Desfavorável provavelmente às formas liberais do socialismo, ela fortalece, consideravelmente, o socialismo de Estado".
Também a ascensão do nazi-fascismo é indissociável da devastação que a guerra provocou na Europa e do surgimento da "ameaça comunista", representada pela consolidação da União Soviética e pelo seu prestígio entre a esquerda europeia. Prestígio crescente nos anos 20 e 30, apesar das críticas que logo surgiram, na própria esquerda, à ditadura do partido único implantada por Lenin e levada às suas últimas consequências por Stalin.
No Brasil a guerra deu impulso ao primeiro ensaio espontâneo de industrialização por substituição de importações, devido à virtual interrupção do comércio com a Europa. Mais significativos e prolongados, porém, foram os seus efeitos políticos.
A 1.ª Guerra marcou a ascensão definitiva dos Estados Unidos à posição de maior economia, em condições de se tornar igualmente a maior potência militar do planeta, duplo status que a 2.ª Guerra viria confirmar e reforçar, com a União Soviética no polo oposto. A hegemonia americana no Hemisfério Ocidental, de Norte a Sul, tornou-se incontestável. Por outro lado, ao mesmo tempo as ideologias europeias de contestação frontal ao liberalismo encontraram receptividade no Brasil (e na América Latina). Não ganharam adeptos numerosos como em seus locais de origem (o Partido Comunista Brasileiro - PCB -, fundado em 1922, e a Ação Integralista Brasileira, criada dez anos depois, jamais chegaram a ser partidos de massa). A despeito disso, comunistas e integralistas (a versão nativista do fascismo europeu) passaram a ter presença em grupos sociais influentes: profissionais e intelectuais de classe média urbana, em sua maioria, e operários fabris sindicalizados, em menor grau.
Suas ideias antiliberais encontraram pontos de contato e afinidade com o pensamento nacionalista autoritário dominante nos anos 30. Ambos tinham no "artificialismo da democracia liberal-burguesa" um alvo comum. Por esse caminho o fascismo deixou suas marcas no Estado Novo (1937-1945) e, mais tarde, na ditadura militar (1964-1985). Mais distante do poder, o comunismo não imprimiu marcas institucionais tão claras, mas o DNA autoritário do leninismo continuou a se reproduzir ao longo do século 20 no Brasil, mesmo depois de parcialmente expurgado do seu componente totalitário puro e duro, a partir da segunda metade dos anos 50, quando os crimes de Stalin foram revelados e o stalinismo perdeu vigor. Veio então a revolução cubana a dar-lhe novo alento.
A esquerda brasileira paga até hoje um tributo caro à sua incapacidade de se livrar desse DNA antiliberal. Sobram restos mal digeridos de uma herança histórica que parte significativa da esquerda prefere não enfrentar com transparência e honestidade intelectual. Em lugar de um diálogo aberto sobre as contribuições, conflituosamente complementares, do liberalismo e do socialismo democrático às conquistas civilizatórias da humanidade, grande parte da esquerda prefere refugiar-se na pantomima dos punhos erguidos e no ataque robótico ao "neoliberalismo" - como se o liberalismo econômico fosse um só e o liberalismo político, o seu apêndice - e ao "imperialismo americano", como se ainda vivêssemos sob a guerra fria. Ao mesmo tempo, silencia diante de regimes autoritários "de esquerda" e não hesita em agir para enfraquecer processos e instituições que, pertencendo ao liberalismo político clássico em sua origem, se tornaram, pelas lutas sociais, patrimônio das democracias dignas desse nome em qualquer lugar do mundo.
Justiça seja feita a intelectuais eurocomunistas ligados ao antigo PCB que promoveram o debate sobre o liberalismo e o socialismo na primeira metade dos anos 80, ainda na etapa formativa da nova democracia brasileira. No âmbito do PT, principal partido da esquerda brasileira no pós-64, intelectuais como Francisco Weffort fizeram esforço na mesma direção. O debate, porém, foi posto à margem, substituído pelo empenho na organização da máquina partidária e pelo pragmatismo da luta pelo poder. Tampouco o PSDB colaborou para dar densidade a essa discussão, em que pese a contribuição individual de algumas de suas lideranças.
Se queremos construir um pensamento social e político à altura dos desafios deste século, que mal começa e já coloca novas exigências, precisamos retomar o debate apenas ensaiado sobre o liberalismo e o socialismo, com sensibilidade para as suas manifestações especificamente brasileiras, e acertar as nossas contas com "o curto século 20".
*Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University e é membro do Gacint-USP.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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