• Substituir o espetáculo pela atividade física
Valor Econômico
Continuo a falar dos ministérios que considero realmente os mais importantes, os que indicam as grandes metas da vida, mas hoje ficam em último plano na estrutura de governo. Depois de tratar da Cultura e antes de encerrar com o Meio Ambiente, é a vez dos Esportes. O próprio fato de que estas pastas são as que melhor definem o futuro de cada um de nós, as que mais podem melhorar a vida - mas ainda estejam relegadas ao fim da lista, levando o que sobrar do orçamento - mostra que estamos perto de um grande salto político. Em breves anos, essas pastas serão decisivas. Por enquanto, não o são. O político que souber priorizá-las deixará sua marca na história.
Esportes e Cultura tratam das grandes atividades-fim da humanidade atual. Por milhares de anos, vivemos no reino da necessidade. As coisas "precisavam" ser feitas, "faltava" comida, fomos e muitos continuam sendo governados pelas carências. A fome é o exemplo claro disso, mas também há as doenças e tudo o que falta em termos do que ainda chamamos as "necessidades básicas" do ser humano, inclusive educação. Mas esse tempo está por acabar. Cada vez mais, somos chamados a exercer nossa liberdade, em vez de suprir nossas faltas e falhas. Deficiências de ordem material, como as mencionadas, podem ser superadas. Por exemplo, hoje a questão não é tanto a de produzir comida, é assegurar o acesso a ela. Faltam poucos anos, espero, para passarmos do mundo da necessidade para o "reino da liberdade".
Nada mais crucial, neste novo mundo, do que cuidar do corpo e do espírito, de nossa natureza e nossa cultura. E já não é o velho "mens sana in corpore sano", a mente sã em corpo são, mas uma mente livre num corpo livre. Quer dizer que já não há modelos únicos do que seriam a cultura ou o corpo saudáveis, mas muitos. É mais promissor pensar novos meios de melhorar a vida, por esses dois caminhos, do que fabricar novos produtos. Nas próximas décadas, o foco da própria economia deverá passar crescentemente para o ser humano e as várias dimensões da vida, biológica, cultural, coletiva. Quem pensar só em produzir coisas pode perder o fulcro da nova economia, assim como o da nova sociedade.
Dentro deste espírito, o Ministério dos Esportes talvez devesse se chamar da Atividade Física. O nome atual dá à pasta um tom de espetáculo, como na prioridade conferida à Copa do Mundo e em breve às Olimpíadas. É evidente que multidões têm prazer em assistir a jogos bons. Mas o corpo em movimento não é bonito apenas de se ver, ele é belo - e saudável - de se ter. Iniciativas notáveis são as maratonas, as ciclovias, o incentivo a jovens, adultos e idosos para praticar atividade física - enfim, tudo o que enfrenta o sedentarismo, o tabagismo, as doenças.
Honra se faça, secretarias de Esportes em todos os níveis de governo, assim como entidades como o Sesc, têm difundido essas práticas. Soube por Ana Paula Vicentin, do Sesc de São Paulo, que a entidade, além de se empenhar em ampliar o número de participantes, evita dar tom competitivo às atividades que envolvem o corpo. Aliás, em seus espaços de prática física, há pouquíssimos espelhos, ao contrário de muitas academias - e para quê? Para não incentivar o narcisismo. O objetivo não é se destacar pela performance ou beleza do corpo, mas sim aproximar, conviver, incluir. A questão não é a performance de uns poucos, mas a melhora na vida do maior número possível. Por isso, aliás, o Sesc se articula com iniciativas como o Esporte para Todos, que tem na Isca - ou Associação Internacional de Esporte e Cultura - e no Move Brasil alguns de seus protagonistas (recomendo que procurem seus sites na Internet).
Daí, minha leiga, talvez ingênua, sugestão de mudar o próprio nome do ministério, para nele destacar a atividade física de todos, não o esporte de alguns. Faz todo o sentido que a ação principal da pasta se torne a de levar todas as pessoas a se mexerem, a se moverem, de modo a ganharem em saúde e mesmo em felicidade. Todos sabemos que a atividade do corpo aumenta a endorfina, o que por sua vez amplia a sensação de bem-estar. Por isso mesmo, não tem lógica nenhuma pessoas assistirem sentadas, frequentemente se engordando com fritas e cerveja, ao esporte praticado por poucos. O esporte como espetáculo, especialmente quando é transmitido pela televisão, muitas vezes corresponde ao sedentarismo do público - o que é um contrassenso. Se mover o corpo é bom, não deve ser como entretenimento, mas como exemplo de vida. Não é ver mover-se o corpo dos outros, é mover o nosso.
Tal mudança de enfoque trará resultados positivos até para a economia, reduzindo dias perdidos de trabalho. Empresas inteligentes já patrocinam, entre seus funcionários, ginástica, esportes e iniciativas de redução de peso. A priorização da atividade física impactará a área da saúde. O Ministério da Atividade Física poderá se tornar, em relação ao da Saúde, o irmão barato, porém mais eficiente, talvez até anexando parte do que é saúde preventiva, a qual por sua vez reduz a necessidade de tratar da doença quando esta já se instalou (e fica dispendiosa, em dinheiro e em qualidade de vida). Quem sabe teremos um dia um Ministério da Saúde e da Atividade Física, com o segundo termo crescendo gradualmente em importância.
Tudo isso faz parte de uma concepção em que saúde e atividade física, cultura e educação param de atender às carências, e em vez disso definem horizontes de expansão ilimitada. Não vamos mais só curar doenças ou extinguir o analfabetismo. Vamos melhorar cada vez mais o corpo e as faculdades do espirito. Nem o céu, mais, será o limite.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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