- O Estado de S. Paulo
• O País redescobriu suas mazelas, reagiu a elas e se reencontrou com a contemporaneidade
É difícil fugir à tradição: fim de ano, momento de balanço. Primeiro, do mundo, depois, do Brasil, na difícil tarefa de comprimir com algum senso o que se desdobrou por 365 dias. Parece que acabou a longa trégua mundial estabelecida depois da queda do Muro de Berlim, da aceitação tácita pelos americanos de que a China existe e de que a Rússia “pode ser contida”. O terrorismo e o triste fim da intervenção no Iraque para “estabelecer a democracia”, somados às batalhas que Estados Unidos e Rússia, por interpostas mãos, enfrentam na Síria (com a participação marginal de europeus), são sintomas de que começam a se desenhar outras formas de equilíbrio/desequilíbrio no mundo.
Se a isso acrescentarmos que a Coreia do Norte continua com seus experimentos com armas atômicas, que o Irã chegou tão perto de desenvolver a bomba que obrigou os Estados Unidos e seus aliados a se sentarem à mesa para negociar; que os conflitos no Oriente Médio se acentuam cada vez mais e não só por causa da disputa pelo petróleo ou em função de alianças antagônicas com as grandes potências, mas por divisões internas entre sunitas e xiitas; que a Turquia, sunita, se une à Arábia Saudita, contra o Irã, afastando-se do Ocidente e da Europa; vê-se que a “antiga ordem”, de ontem, está abalada. Para não mencionar a anexação da Crimeia pela Rússia, a qual, sem ter sido chamada à mesa dos grandes, por erro do Ocidente, mostra agora que existe e tem garras.
Umas poucas palavras sobre a China. Depois de haver-se integrado ao mercado internacional à sua maneira e de se tornar o principal financiador externo da dívida pública americana, hoje joga o grande jogo. O Mar do Japão “é nosso” e somos uma só China, dizem, a despeito de Taiwan, aliás, domesticada. Talvez seja melhor para essa “grande China” voltar-se para a Europa (e para os russos, no caminho) do que se fiar nos amigos do outro lado do Pacífico. O resto... é o resto, mas também existe: os Brics, por seu tamanho e sua produção, querem um “reconhecimento especial” e a Europa, golpeada pelo Brexit, ainda tem em seu coração a Alemanha e a França. E a América Latina, voltando-se mais para formas democráticas não populistas e sendo obrigada a apertar os cintos, não deve ser posta à margem. O mesmo se diria da parte da África que está sacudindo o peso de sua história colonial.
Portanto, foi-se a ilusão de uma superpotência hegemônica. Não é acaso isso que o isolacionismo de Trump, perigoso por suas consequências, revela? Tal sentimento talvez menospreze que a América, como eles dizem, ainda é a única potência com força militar global e é fonte de muita inovação tecnológica e capacidade empresarial. Não pode pura e simplesmente dar as costas ao mundo nem desprezar suas responsabilidades, não só no campo militar, mas também, por exemplo, em relação ao “aquecimento global”. Por isso mesmo a atitude “trumpiana” é perigosa. O mundo precisa de líderes que, defendendo seus interesses nacionais, não se esqueçam de suas obrigações universais (direitos humanos, meio ambiente, imigrações, etc.) e que preservem a paz. Portanto, que dialoguem e negociem.
Do nosso lado, o Brasil despertou. Depois de ter sucumbido aos desregramentos populistas, redescobriu a pólvora: que equilibrar os orçamentos e evitar a crise fiscal não é “neoliberalismo” nem corresponde a servir aos interesses do mercado. É bom senso. E descobriu também que nem só de austeridade pode viver um país. No momento, todo esforço se dirige a retomar o crescimento econômico. Sem ele não se viabiliza o ajuste fiscal. É preciso, porém, olhar mais à frente e tratar de assegurar um lugar ao Brasil numa nova fase da globalização, pois são as perspectivas de crescimento de longo prazo as que mais importam.
Postas à luz do sol as práticas de corrupção e a traição dos que, em nome dos pobres, serviram não ao grande capital em seu conjunto, mas ao capital próprio e ao dos amigos, defrontamo-nos com um desmazelo administrativo sem precedentes, com uma fragmentação partidária que torna difícil governar e, o que é mais desafiador, nos defrontamos com uma “nova sociedade”. Nesta as pessoas se informam, comunicam-se e às vezes agem por conta própria, sem que líderes ou partidos as conduzam.
Assim o Brasil no ano que terminou redescobriu suas mazelas, reagiu a elas, mostrou que as instituições são mais fortes do que parecem, e também se reencontrou com a contemporaneidade. Não é pouca coisa.
Mas não dá para comemorar. A partir da crise financeira de 2007-2008, e especialmente depois de 2010, os desatinos foram tantos que a herança de desemprego e desesperança cobrará tempo para que haja uma recomposição. Não só as finanças estão “quebradas” em todos os níveis (municipal, estadual e federal), como também a carência de serviços públicos (educação, saúde, transportes) é gritante. Dentre eles, os de segurança. Não seria de surpreender se a força do crime organizado viesse a desafiar mais amplamente as forças da ordem. As corporações, por outro lado, dominam o aparelho público; a falta de recursos abre espaço fácil para a demagogia e a população sente-se separada do Estado, abandonada, e sem ver quem abrirá um horizonte, criando condições para mais investimentos e mais empregos. Há fome de eficiência, justiça e maior igualdade.
A despeito de tudo, vamos navegando no mar das delações com esperança em alguma justiça e temos um governo que tenta pôr a casa em ordem. Meus votos para 2017 são de que reencontremos o caminho do desenvolvimento, mantenhamos firmes a liberdade e a democracia, ajustemos os orçamentos e, ainda por cima, que sejamos capazes de criar empregos e cuidar do bem-estar das pessoas numa sociedade mais igualitária e mais decente. Sem retrocessos, inventando um futuro melhor.
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* Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República
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