- Folha de S. Paulo
A substituição de Janot por Raquel Dodge não resolve o dilema da politização do Ministério Público
No ápice da crise provocada pela gravação da conversa entre Joesley Batista e Temer, a Folha noticiou que, bem antes do fatídico encontro, o advogado dos irmãos Batista recebera "aulas de delação" ministradas por um agente da PF e um procurador da República. Precisamente naquele período, o procurador Marcello Miller, lugar-tenente de Janot, preparava sua saída do Ministério Público negociando emprego num escritório de advocacia contratado pela JBS. Os novos áudios, entregues por um Joesley acuado, "com conteúdo gravíssimo" (Janot), podem evidenciar um nexo entre as duas informações. De qualquer forma, sua mera existência como novidade prova que há algo infectado no reino do Ministério Público.
Janot desmentira, peremptoriamente, em 20 de maio, os rumores sobre a participação de Miller nas tratativas do MPF com os irmãos Batista que culminaram com o acordo de delação. Agora, entre constrangido e indignado, o procurador-geral finalmente anuncia uma investigação do episódio, admitindo a possibilidade de que tenha sido ludibriado desde o início. De lá para cá, tudo mudou –menos a linguagem de Janot, perpassada de tons condoreiros, salpicada pela fúria santa dos justos. O rei ainda não está nu, mas já desfila de cueca em praça pública.
A sombra da suspeita, que paira sobre Miller, estende-se inevitavelmente até o procurador-geral. Joesley cedeu os novos áudios num gesto de desespero. Janot só deflagrou a investigação depois que os fatos fecharam o cerco à sua cidadela. A hipótese de um conluio criminoso entre o chefe do Ministério Público e Joesley Batista não pode ser excluída de antemão, mas nenhum indício forte a sustenta. Salvo surpresas deploráveis, a responsabilidade de Janot situa-se fora da esfera criminal: o Ministério Público caiu na cilada dos Batistas porque sucumbiu à sedução da política.
Logo depois de fazer a defesa de Miller, Janot escreveu que o "foco do debate" sobre o acordo firmado com Joesley seria "o estado de putrefação de nosso sistema de representação política". A frase, comum em textos de análise política, é inaceitável em pronunciamentos do procurador-geral.
A missão constitucional do Ministério Público é a "defesa da ordem jurídica", não a busca de uma reforma política. Na confusão entre uma coisa e outra encontram-se os reais motivos da celeridade excepcional das negociações com os Batistas e da repugnante concessão de imunidade judicial aos delatores. O cavaleiro andante da Justiça, vingador da República, desmoraliza a si mesmo –e, no percurso, acerta uma flecha envenenada na credibilidade da Lava Jato.
Janot é sintoma, não causa. O encanto da política espraia-se por uma influente ala do Ministério Público, com epicentros em procuradores messiânicos que se exibem como "extremistas do amor" (Dallagnol) ou citam Danton para sugerir a salvação pela via do "tribunal revolucionário" (Carlos Fernando Lima). A armadilha montada pelos Batistas só se tornou possível porque o MP ignorou reiteradas advertências da PF, que pedia tempo para juntar os fios de uma história mal contada, desarmando as proteções do instituto de delação premiada. Depois dos novos áudios, aprendemos que o risco maior à Lava Jato não decorre das manobras de Lula, Temer ou Aécio, mas da deriva jacobina de procuradores com uma causa.
A substituição de Janot por Raquel Dodge não resolve, por um passe de mágica, o dilema da politização do MP. A Lava Jato, valiosa demais para sucumbir aos desvarios dos missionários, pode ser preservada por duas medidas tão simples quanto urgentes. Numa ponta, a PF deveria ser autorizada a participar, junto com o Ministério Público, das negociações de acordos de delação premiada. Na outra, o STF deveria, clara e nitidamente, atribuir aos juízes a prerrogativa de recepcionar ou rejeitar os acordos com delatores. O fim da "soberania" do Ministério Público –se for essa a herança deixada por Janot, seu mandato terá valido a pena.
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