- O Estado de S.Paulo
Representação política desigual viola princípio basilar da cidadania: o de ‘cada cidadão, um voto’
A reforma política, assunto por demais recorrente nas últimas décadas, continua sendo posta como condição necessária para o aperfeiçoamento democrático do País – em alguns momentos é mesmo veiculada como antídoto ou panaceia para todos os males do sistema político. Sinônimo de redefinição das normas político-eleitorais, seus propugnadores e partidários supõem, de fato, promover mudanças substanciais no sistema eleitoral praticado a partir de 1945: substituição do voto proporcional pelo majoritário(distrital), o voto obrigatório pelo facultativo, o presidencialismo pelo parlamentarismo, etc.
Contrastando com essas proposições, vale lembrar que desde os anos 1990 as regras político-eleitorais vêm sendo, gradativa e topicamente, modificadas e, embora nem sempre consensuais, têm corrigido muitas distorções e anomalias da representação política. Pode-se mencionar a redução do mandato presidencial de cinco para quatro anos (1994), a lei dos partidos (1995), a adoção da urna eletrônica (1996), o estabelecimento da reeleição para os cargos executivos (1997), a exclusão dos votos em branco do quadro eleitoral (1997), o impedimento de parlamentares trocarem de legenda (2007), a Lei da Ficha Limpa (2010), a proibição de doação de empresas para campanhas eleitorais (2015), o fim das coligações nas eleições proporcionais a partir de 2020 (2017), a cláusula de barreira de 1,5% (progressiva até 3%) para partidos políticos terem direito ao funcionamento legislativo, acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito (2017), etc.
Além dessas mudanças no sistema eleitoral e de outras pretendidas por determinadas vertentes políticas, há uma questão irresolvida sobre a qual paira um silêncio constrangedor e toda vez que é suscitada forças poderosas (em especial no Congresso Nacional) procuram ofuscá-la por meio de artifícios variados. O problema em pauta é o da desigualdade na representação política dos entes (Estados) subnacionais da Federação. Tal assimetria viola um dos princípios basilares da cidadania: o preceito segundo o qual “cada cidadão, um voto”.
Construção histórico-política, essa desproporção na representação é secular. No fim do Império as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Bahia eram demasiadamente sub-representadas: menos 37%, 30% e 21% respectivamente em relação às demais. A Constituição de 1891 estabeleceu uma cadeira para cada 70 mil habitantes e um mínimo de quatro deputados para cada Estado – favorecendo, de um lado, Estados como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso e, de outro, preservando a sub-representação de Minas Gerais e, com o aumento populacional, São Paulo. Dando curso a essa tendência, as Constituições de 1934 e de 1946 não só mantiveram, mas acentuaram o desequilíbrio representativo entre os entes federativos – essa segunda estabeleceu em sete o número mínimo de deputados federais de cada Estado, afetando uma vez mais São Paulo, Minas Gerais e Bahia e beneficiando unidades com menor população.
No decurso da ditadura (1964-85), seus mandatários fixaram diversas regras eleitorais, movidos, no mais das vezes, por conveniências de preservação do domínio político arbitrário. Em 1977, por exemplo, foi determinado o mínimo de seis e o máximo de 60 deputados para cada circunscrição, além de se criarem novos Estados (Mato Grosso do Sul e Rondônia). Essas medidas implicavam o aumento da discrepância da representação. Mesmo a Constituição “cidadã” de 1988, ao estabelecer o piso de oito e o teto de 70, facilitar a criação de novos Estados (Tocantins, Roraima e Amapá) e de estatuir o direito à representação para o Distrito Federal, acentuou a sobrerrepresentação de algumas unidades da Federação (DF, MS, TO, RO, AP, AC, SE, RR, etc.) e a sub-representação de outras, como São Paulo, que deveria ter cerca de 110 deputados, e não somente 70.
Essa desproporção é ainda mais evidente na representação dos entes subnacionais no Senado. Nele foi estabelecida, desde a fundação do Estado nacional, a premissa de que todas as unidades têm igualmente três representantes, como forma de assegurar o equilíbrio federativo, não importando sua magnitude eleitoral. Se na representação no Senado não é exequível o princípio da equivalência – “cada cidadão, um voto” –, a paridade estrita, por sua vez, só promove a desarmonia e é, sim, fator de desequilíbrio da representação política. Uma amostra de quão pouco equânime é esse preceito pode ser verificado comparando o valor do voto entre os diversos Estados: o voto de um cidadão em São Paulo vale muitas dezenas de vezes menos que o de um de Rondônia ou Roraima. A representação no Senado foi tornada ainda mais díspar com a sucessiva criação injustificada de novas circunscrições subnacionais, tanto pelo desmembramento de Estados, quanto pela elevação de territórios à categoria de unidades estaduais.
Ao se estabelecer que o voto em alguns distritos vale mais do que em outros está-se, em realidade, subtraindo direitos políticos de grande parte dos cidadãos eleitores do País. Isso, obviamente, tem implicações políticas determinantes na composição dos Poderes e nas formas de mando. Tal falta de equivalência é conveniente à reprodução de oligarquias regionais, sobretudo por ser elemento potencializador de práticas e cultura política clientelistas, fisiológicas e patrimonialistas, tanto no âmbito local quanto na esfera do poder central.
Por conseguinte, a não equalização na distribuição de cadeiras na Câmara e no Senado da República compromete seriamente a democracia. Daí ser a questão central de qualquer reforma política a redefinição das regras no sentido de torná-las estritamente proporcionais (ao eleitorado). Sem uma composição da representação política equitativa e em conformidade com a amplitude do eleitorado, o País estará fadado a continuar a ter um federalismo constringido e desequilibrado.
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*Professor titular de sociologia da Unesp
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