- O Estado de S.Paulo
A fixação estéril no multilateralismo atrasou as nossas iniciativas bilaterais ou regionais
Pelo menos desde Adam Smith sabemos que um mundo de livre-comércio e especialização nos levaria – no longo prazo e na maioria das nações – a um estágio superior de produtividade e conforto material. Do mesmo modo, é óbvio que um mundo sem guerras nos teria levado a uma condição bem superior à atual, em que as nações ainda se atacam ou se envolvem em guerra civis – sem mencionar os imensos recursos investidos nos sistemas de defesa, mesmo em tempos de paz.
Infelizmente, teremos de viver por bom tempo num mundo distante da paz perpétua kantiana, incluindo tudo o que diz respeito ao comércio internacional. Apesar da globalização e dos esforços de instituições multilaterais, o protecionismo comercial entre as nações permanece. Nessa área não chegamos a uma situação tão desesperadora quanto a dos anos 1930, mas o cenário internacional não será tão cedo um aprazível piquenique de países pacíficos e amigos do livre-comércio.
A administração Trump está empenhada numa guerra comercial aberta, que, aliás, dispensa eufemismos e sutilezas. Nestes dias deverá ser anunciado o pacote de tarifas em maiores detalhes, tendo a China explicitamente como alvo.
Nações são como bichos de muitas e contraditórias cabeças. De modo geral, suas ações nem sempre resultam de racionalidade de longo prazo, mas de contínuas disputas internas, frequentemente mal resolvidas, e condicionadas pelos limites estreitos de sua formação histórica.
No Brasil, os que acreditavam sinceramente que bastaria abrir unilateralmente os portos e aeroportos para nos movermos rapidamente da condição de país de renda média a país rico devem ter ficado especialmente frustrados com as recentes ações protecionistas do presidente Donald Trump, que imporão perdas também a produtores brasileiros.
O fortalecimento de uma política tarifária discriminatória pelos EUA vai contra o cânone da Organização Mundial do Comércio (OMC): não pode haver tarifas preferenciais em seu âmbito – salvo nos blocos regionais e em casos específicos e de certo modo “justificados”. A atitude voluntariosa dos EUA – lastreada no formidável poder de sua economia – é um bom lembrete de que, na realpolitik, o comércio pode ser livre... ma non troppo.
A verdade é que o protecionismo vem se mantendo ou recrudescendo também entre as nações mais ricas. Os acordos regionais – dos quais a União Europeia é o mais amplo e profundo – não têm recuado na discriminação de parceiros de fora do bloco.
O escritório Gowling WLG, uma das maiores bancas de Direito Internacional do mundo, divulgou recentemente que pelo menos 7 mil medidas restritivas ou protecionistas foram tomadas pelas 60 maiores economias desde a crise de 2008. Os objetivos seriam proteger indústrias relevantes e garantir empregos e liderança em setores específicos.
No caso brasileiro, muitos críticos de uma política ativa de comércio exterior afirmam, de boa-fé, que o Brasil é um dos países mais protecionistas, com base em dois argumentos: 1) nossas tarifas médias seriam maiores que a média mundial; e 2) nossa corrente de comércio (importações + exportações) em relação ao PIB seria muito baixa.
O cálculo de tarifas médias é bastante criticado, na medida em que não considera o quanto as tarifas maiores simplesmente fecham o mercado a importações. Como essas tarifas maiores recebem ponderação zero ou muito baixa, a tarifa média apurada diz muito pouco sobre como a economia se comportou de verdade em reação a maiores tarifas.
Já o indicador da corrente de comércio sobre o PIB é mais robusto tecnicamente, embora não seja capaz de captar diferenças no tamanho das economias. Por exemplo, nossa corrente de comércio sobre o PIB, segundo dados da OCDE e do Banco Mundial, é de 25%, não muito distantes dos 27% dos EUA.
As tarifas, é bom lembrar, não são o único indicador de protecionismo. Desde 2012 o Japão promoveu expressiva e rápida desvalorização competitiva no câmbio, ao estilo das políticas econômicas beggar-thy-neighbor. O iene foi desvalorizado em 38% em poucos meses!
Nessa disputa também têm peso as barreiras técnicas e sanitárias, que são mais difíceis de identificar e de contestar na OMC, e os acordos bilaterais e regionais (que, aliás, são preferíveis a uma situação de “cada um por si”). Infelizmente, no atual estágio das coisas, dada a imensa heterogeneidade das nações, não há nenhuma chance de formação imediata de um mercado mundial livre, em extensão e em profundidade, que é o objetivo de longo prazo da OMC.
Como se sabe, parte das políticas protecionistas tem raízes na tentativa de preservar os níveis de emprego. Com a expansão da automação e o encolhimento dos postos de trabalho de baixa qualificação, uma massa crescente de desempregados e subempregados tende a pressionar os governos a ampliarem as oportunidades de inserção no mercado. Embora seja um fenômeno mais amplo, a onda populista e antiglobalista que varre os países desenvolvidos é também uma resposta a essa ansiedade.
Não interessa nossa avaliação subjetiva ou moral sobre o populismo e o recrudescimento do protecionismo. Qualquer que seja o julgamento que se faça, esses fatores são e continuarão sendo decisivos nas ações dos governos dos países desenvolvidos. Não se escolhe o mundo em que se vive. As mudanças possíveis são lentas e, a cada passo, modestas.
O Brasil foi prejudicado no passado recente por certa fixação estéril no multilateralismo, que rendeu poucos frutos e atrasou nossas iniciativas bilaterais ou regionais, seja para novos acordos, seja para aperfeiçoamento dos já existentes. Batalhar por teses irrealistas nesta etapa de elevado e até crescente protecionismo no mundo viria apenas a acirrar a preocupante desindustrialização que o País vive há anos e a amplificar os desafios que a automação vem trazendo para os trabalhadores, em termos de emprego e de renda.
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*Senador (PSDB-SP)
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