Grande política, no entanto, numa
democracia altamente competitiva como a nossa, não produz outros resultados,
além do simbólico, se não estiver conectada com a pequena política, do dia a
dia, ofício que ocupa agentes cujos perfis e condutas carregam, em geral, aos
olhos do público, simbolismos negativos. Numa democracia, a pequena política,
alvo de censura difusa e protestos indignados de quem acredita – ou finge
acreditar – que boa política é aquela que se pratica desinteressadamente,
precisa ser o destino de toda “boa ação” que pretenda ser, de fato, política. Na
relação entre governantes e governados não se pode dispensar o idioma plebeu da
pequena política, sem o qual nobreza e democracia não conversam. Valores e
interesses são mundos conectados. A política democrática vive da interação de
ambos.
Se pensarmos na necessária tradução que um gesto
político largo - como foi o do encontro entre os dois líderes - precisa
encontrar no terreno que, na política, corresponde ao que Rômulo Almeida chamou
de “chão das realidades vulgares”, é legitimo especular sobre seus
desdobramentos práticos possíveis. Farei isso a seguir, correndo os riscos de
imprecisão e erro que são inerentes a toda interpretação.
A leitura mais direta e corriqueira do fato saliente na superfície é a de que ele corresponde ao realismo político de FHC e ao faro eleitoral de Lula. Convencido da ausência de um nome competitivo do seu partido para concorrer às eleições do ano que vem, FHC teria achado um modo de reforçar, simbolicamente, as reconhecidas restrições de tucanos históricos de diversas tendências ao obstinado governador de São Paulo. Também pessimista quanto às chances de agregação do centro em torno de algum outro pré-candidato externo ao PSDB, o tucano teria se disposto a um entendimento que poderá resultar em aliança com a esquerda, ao menos no segundo turno das eleições. Por essa que chamo de hipótese A, Fernando Henrique estaria dando seguimento a uma declaração pública de que contra Bolsonaro apoiaria “até Lula”. Vendo esse caminho como o mais provável, teria apressado o passo, antecipando o entendimento na expectativa também de que isso poderia moderar o discurso de pré-campanha do petista de modo a ser mais amplo, agregador e acolher também valores e interesses políticos do centro liberal-democrático com os quais ele, FHC, se afina.
Essa hipótese encontra contrapartida lógica
no interesse de Lula em estender sua influência eleitoral ao centro. Mesmo
ciente de que não é mais tão grande a influência prática do outro ex-presidente
sobre a conduta do seu partido e aliados, o petista não despreza o rendimento eleitoral
que o fato pode ter para si, independentemente do que digam ou façam os
partidos do chamado centro. Se é o confronto direto com Bolsonaro o que Lula
deseja, o encontro com FHC vem a calhar. Afinal, mesmo que a intenção do tucano
seja pavimentar caminho a uma aliança apenas no segundo turno, o efeito do
gesto, se visto como recíproco (e esse foi o tom de sua divulgação pelo PT), permitiria
que faixas do eleitorado de centro resolvam caminhar na direção do petista
antes disso, por entenderem o movimento dele como demonstração de uma intenção
apaziguadora. Isso ajudaria a reduzir mais um pouco o já problemático espaço
para uma candidatura de centro que se interponha entre Lula e Bolsonaro. Por
essas razões pode-se dizer que essa hipótese A, sobre como o gesto de grande
política se traduzirá na pequena política, recoloca na cena o espectro do “Lulinha,
paz e amor” de 2002. Guardadas as proporções de cada contexto e da força
política relativa dos dois e dos demais atores em cada um deles, pode-se dizer
que a hipótese A permite compreender o gesto de FHC de aceitar o convite de
Jobim, ex-presidente do STF, como uma reedição metafórica da passagem
civilizada da faixa presidencial a Lula em 2003 e o gesto de Lula, de aceitar o
mesmo convite, como uma reedição metafórica de sua “carta aos brasileiros”.
Esta reflexão poderia ficar por aqui e me
daria por satisfeito se a política não fosse atividade em que a ambiguidade
reina. Nela, o óbvio sempre reluz (como demonstram dois anos e meio de governo
Bolsonaro), mas não costuma governar as ações decisivas. Essas encontram nas
frestas e na penumbra o local e o clima mais propícios para prosperarem. É a
noção dessa ambiguidade - e a compreensão de que ela nem sempre deixa políticos
sem rosto, sem ponto e sem rumo, mas por vezes lhes oferece essas três coisas
imprescindíveis para que a política cumpra sua missão através deles - que me faz
trazer aqui uma hipótese B de tradução da reunião entre FHC e
Lula para a pequena política. Vamos a ela:
Como político experiente e de rara
sagacidade, Lula sabe que o caminho até 2022 não será o voo em céu de
brigadeiro que pesquisas - ou seus relatórios - hoje indicam, como se
conspirassem para favorecê-lo. Sabe que a disputa ainda se encontra num ponto
equivalente a quartas de final, que as semifinais começam daqui a mais ou menos
um ano, só se concluindo em outubro de 2022 e que a final se dará três semanas
depois. Sabe que já resolveu sua classificação nas quartas, por w.o. Com
sua simples reaparição na cena, em março passado, fez retroceder ao breu das
tocas as conversas que até então eram cada vez mais públicas, sobre renovação
da esquerda. Sobrou ali Ciro Gomes que,
a exemplo do próprio Lula, parece já estar resolvendo sua classificação para as
semifinais de outubro de 2022, no seu caso por wo partidário, a não ser
que no apagar das luzes o presidente do partido lhe pregue uma peça. Lula também
sabe que, salvo por tal cataclisma, jogará contra Ciro as semifinais da
centro-esquerda, por mais que Ciro, que antes anunciava essa semifinal como
parada obrigatória (derrotar Lula primeiro, para derrotar Bolsonaro no segundo),
agora diga, numa guinada analítica de 360 graus, que vai ao segundo turno
contra Lula. Voltarei a esse ponto daqui
a pouco. Retomo ao argumento da hipótese B pela qual o encontro Ciro x Lula se
resolverá no primeiro turno, ao que tudo indica em favor de Lula, que chega
para a disputa com confortável saldo positivo, sendo assim franco favorito
para, pelo menos, ir à final. Apostadores afoitos chegam a prever que a faixa
presidencial já está sendo moldada de novo ao seu figurino pois estaria a cada
dia mais provado que só ele pode vencer Bolsonaro - e que vencerá.
Há torcedores de Lula mais realistas que o
rei. Soltam rojões pelas pesquisas e entram em vertigem, preparando manifestações
de rua pelo “fora Bolsonaro”, em desafio aberto ao espectro da terceira onda da
pandemia. Lula deve estar, a essa altura, preocupado com a sombra que esse
ensaio de emulação da aventura chilena pode lançar sobre suas conversas, não só
com o centro e o centrão, mas também com o eleitorado de uma outra esquerda,
que trilha caminhos mais positivos. Como ficam, por
exemplo, os argumentos dessa esquerda negativa, que imagina vencer Bolsonaro se
nivelando a ele, diante da posição do governador Flavio Dino, que respaldou,
politicamente, a autuação administrativa do presidente pela vigilância
sanitária do Maranhão, em razão de atentados à saúde pública que cometeu?
O contraste entre as duas esquerdas na prioridade
à saúde pública é flagrante, mas se essa fosse a única saia justa seria fácil
para Lula pairar, pois ele tem reconhecida expertise em morder e
assoprar e pode perfeitamente equilibrar com seu carisma as duas pontas de uma
coalizão heterogênea. Seu seguro contra riscos de fissura é o fantasma da
reeleição de Bolsonaro. Para evitá-la, democratas sempre se disporão a engolir
sapos, barbudos ou não. Acontece – e
Lula fareja isso certamente antes de todos – que pode não haver a tal sombra no
dia da final e ele tenha que medir forças, à luz do dia, com um candidato de
centro-direita anti-bolsonarista, o que não será nada fácil. É a possibilidade
de o céu de brigadeiro fugir e ele se ver parado na estação em que ficou em
1994 – e não na de 2002 – que apressa o petista a querer logo dar cabo de Ciro,
de modo a que o eleitorado de centro-esquerda, na hora da urna, não volte a
pensar em reciclagem da esquerda.
Entender-se com FHC ajuda nisso e, também, é uma aposta em que esse entendimento
reduzirá o risco de surgir outra candidatura competitiva de oposição.
De acordo com a hipótese B, FHC também não
estaria dando esse jogo por jogado e, assim como Lula, sabe que o valor do
encontro é simbólico e não avança em convergência eleitoral prática. Ainda está
longe o momento em que se conhecerá a cara (ou as caras) da oposição a
Bolsonaro em 2022. Entre um duelo pessoal com Lula e uma guerra contra tudo e
contra todos existem inúmeras possibilidades intermediárias aguardando o
exterminador do futuro. É possível interpretar o passo de FHC como uma ajuda a
Lula para liquidar seu adversário interno no campo da esquerda. Sim, porque se
é verdade que com o encontro na casa de Jobim todos os possíveis candidatos do
centro podem se sentir “abandonados” por FHC, nenhum deles é mais afetado
negativamente pelo simbolismo da foto do que Ciro Gomes - até mesmo mais do que
Dória - pelo fato de se situar no hemisfério da centro-esquerda. Ele é alvo
comum dos dois líderes e se as razões de Lula são óbvias, as de FHC só aparecem
se pensarmos o quanto baixar a bola de Ciro pode ser importante para que o PSDB
e o centro se entendam com a centro direita. Ali se desenrola a única disputa
ainda em aberto nas quartas de final. Entre o PSD e o DEM trava-se uma intensa
competição pela quarta vaga nas semifinais. Dela sairia, pela hipótese B, uma
solução relativamente mais próxima (PSD) ou mais distante (DEM) do alambrado do
palácio e dos círculos políticos que ainda apoiam, com cada vez menos
desenvoltura, o inquilino que ali está. Ciro Gomes, sentindo que o campo da
esquerda está minado, tem forçado a barra para entrar nesse jogo na
prorrogação, o que não está previsto, nem na tabela, nem no regulamento liberal.
FHC, ao mostrar que Lula é “o cara” da esquerda, pressiona seu partido a se entender
com a centro-direita para evitar ser devorado na campanha pelo PT. Esse
entendimento, a essa altura, é a única alternativa tucana para fugir de uma
campanha suicida carregando o fardo de João Dória. E como sustentei no artigo da semana passada (“O
PSDB e o centro: entre a grande e a pequena política”), pode superar
essa situação pré-eleitoral dificílima contribuindo, com um programa realmente
social-democrata, para a abertura de outra possibilidade (liberal-democrática) ao
país, além da saída ofertada pela esquerda. Se o passo de FHC esvaziar ânimos
de candidatura própria em seu partido, terá ajudado e não atrapalhado o centro
democrático a se agregar, além de comprometer Lula a retribuir o gesto, se o
jogo virar.
Descritas as hipóteses, resta dizer que
nenhuma das duas é politicamente inocente. A hipótese A (metáfora de 2002/2003)
é claramente favorável ao que se pode chamar de estratégia de Lula. Se
prevalecer, tende a confirmar o desfecho que até aqui se apresenta como o mais
provável. A hipótese B (metáfora de 1993/1994) significa a abertura de uma
chance, hoje não visível, ao chamado centro de, desde que agregue suas modestas
forças às da centro-direita, reverter o jogo, deslocando dele um incumbente
cada vez mais atrapalhado com suas próprias pernas. Fernando Henrique e Luiz
Ignácio, ao se disporem a esse jogo, aceitam o risco inerente a todo jogo de
grande política.
O risco de Lula é o de baixar a guarda a um
adversário que pode, daqui a um ano, estar participando de um novo Plano Real.
Ao corrê-lo, Lula sinaliza não repetir o erro da autossuficiência da esquerda,
que o derrotou duas vezes em embates do passado com o PSDB e cuja correção o
levou ao governo. O risco de FHC é o de frustrar sem remédio seus aliados
anti-lulistas e anti-petistas. Ao corrê-lo, sinaliza ao PSDB que deve repetir,
num cenário pós-Bolsonaro, seu acerto do pós-Collor e olhar para o lado oposto
do PT.
Seja qual for a hipótese, ou se prevalecer outra,
o país só se beneficiará se o desfecho descontinuar a atual situação. Lula e
FHC, assim como todos os democratas, precisarão estar cooperando em clima de
entendimento quando chegar a hora H de defender o nosso Capitólio. Isso implica
em riscos a projetos pessoais e partidários. Riscos políticos, como o que
correu Ulisses Guimarães ao conter e vencer ânimos na esquerda de resistir à
posse de Sarney quando Tancredo Neves adoeceu. Entre retomar o mote das Diretas
Já para tentar levá-lo à presidência e garantir a Constituinte, o instinto da
grande política o fez escolher o segundo caminho e fazê-lo caminho seu. Riscos
políticos como o que correu Tancredo ao engajar o governo de Minas e a si
próprio na campanha das Diretas como se ela fosse sua. Campanha que, se
vitoriosa, faria de Ulisses candidato imbatível, quando o interesse de Tancredo
era o colégio eleitoral. Altruístas?
Jamais. Políticos de grande política, isso é o que foram. Jamais abriram a mão de
aspirações e interesses, inclusive pessoais. Mas sabiam, por valores, instinto
e treino na luta democrática, que em política não se ganha sozinho, que
aspirações e interesses prevalecem se puderem e souberem agregar. Os políticos
brasileiros, em geral, precisam reaprender essa lição comezinha.
*Cientista político e professor da UFBa
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