Editoriais
É o empobrecimento
Folha de S. Paulo
Dados mostram desigualdade dramática em
queda da renda e impactos da inflação
É notável como a recuperação da economia
brasileira desde a recessão provocada pela pandemia não se traduz hoje em
percepção geral de maior bem-estar, o que também tem consequências sobre a
popularidade de Jair Bolsonaro (PL). Novos dados do IBGE sobre a queda do poder
de compra em 2021 jogam luz sobre o fenômeno.
O Produto Interno Bruto teve expansão de
4,6% no ano passado, recuperando-se da queda de 3,9% provocada pela Covid-19 em
2020. Esse ganho, apurado a partir da produção de indústria, serviços e
agropecuária, não se reflete nos valores declarados pelas famílias.
O rendimento domiciliar per capita —vale
dizer, a renda disponível em cada domicílio, dividida pelo número de moradores—
teve queda de 6,9% no período. Em valores corrigidos, caiu de R$ 1.454 para R$
1.353 mensais.
Ressalve-se que essa pesquisa do IBGE, feita por meio de entrevistas em uma amostra de residências, tende a subestimar rendas como as oriundas de patrimônio e aplicações financeiras. Ainda assim, os números bastam para escancarar como as perdas de poder de compra se distribuíram de forma desigual na população.
Para a metade mais desfavorecida dos
brasileiros, o baque foi muito maior, de 15,1%, e os valores mensais per capita
encolheram de R$ 489 para R$ 415. Se considerados os 5% mais pobres, a
queda chega a
brutais 33,9%, de R$ 59 para R$ 39.
Em contraste, o topo da pirâmide social
declara danos menores, de 6,9% no 1% mais rico, cujos rendimentos per capita
ficaram em R$ 15.940 mensais —provavelmente subestimados, repita-se.
Grande parte da discrepância pode ser
atribuída ao fim do auxílio emergencial de R$ 600 pago durante a pandemia, que
contribuiu para um considerável incremento da renda dos mais pobres em 2020,
mesmo durante a paralisação das atividades econômicas.
O outro fator principal é a escalada da
inflação, que, como sempre, tem impacto muito mais dramático sobre o poder de
compra dos que dependem do trabalho menos qualificado. Mesmo com alguma
recuperação do emprego a partir do ano passado, os salários perderam para os
preços.
A resposta da política pública foi
precária. A criação do Auxílio Brasil se justificava pela necessidade de
ampliar a rede de proteção social, mas serviu de pretexto para uma elevação
geral de gastos públicos de objetivos muito menos nobres.
Se Bolsonaro não pode ser responsabilizado
pela onda inflacionária global, seu governo agrava os efeitos e dificulta o
controle da carestia ao desorganizar as finanças públicas e minar a
credibilidade da política econômica. Os mais prejudicados têm domicílio
conhecido.
Suspeitos de sempre
Folha de S. Paulo
STJ exige critérios para abordagens
policiais, mas resposta das forças é incerta
"A busca pessoal independerá de
mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa
esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo
de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar",
diz a lei brasileira.
O texto, no artigo 244 do Código Processual
Penal, versa sobre a abordagem policial, que muitos brasileiros conhecem,
alguns mais de perto, como "baculejo".
Apesar da exigência legal de fundada
suspeita, resta pouco claro o que deve basear aos olhos da lei o critério das
forças de segurança para abordar um suspeito.
Diante dessa opacidade, a Sexta Turma do
Superior Tribunal de Justiça considerou ilegal a busca pessoal ou em veículos
fundamentada em impressões subjetivas por parte da polícia a respeito do
indivíduo abordado, em especial quanto às suas aparência e atitude.
Recai, portanto, sobre os agentes o dever
de justificar a abordagem de forma objetiva, em particular no que se refere às
razões para que o alvo da ação pareça possuir objetos ilícitos. Sem isso,
provas resultantes da busca são consideradas inválidas —como ocorreu no caso
examinado pelo STJ.
Não se discute que a busca pessoal é tática
importante de policiamento. Cumpre, porém, reforçar sua eficácia e evitar
abusos.
Dados da Secretaria da Segurança Pública
paulista apontam que, no primeiro trimestre de 2022, as polícias do estado
realizaram 2,4 milhões de revistas pessoais, das quais 574 mil na capital. Daí
resultaram 26 mil prisões em flagrante (1,09% das abordagens) e 2.608 armas de
fogo apreendidas (0,1%).
Sabe-se que as abordagens estão
sujeitas a vieses. Atitudes corriqueiras como parecer nervoso ou o
uso de vestimenta simples podem, aos olhos da polícia, justificar uma suspeita,
ao arrepio da lei.
O relatório "Elemento Suspeito",
produzido pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania com pesquisa do
Datafolha, apontou que, na cidade do Rio, pretos e pardos são 63% dos
abordados, enquanto representam 48% da população. Ressalve-se que nem todos os
contatos relatados são negativos.
Em reunião recente, os secretários
estaduais de Segurança Pública concordaram em manter as buscas pessoais, sem
indicar com clareza como pretendem seguir o entendimento restritivo do STJ. A
questão, ao que parece, ainda vai gerar mais disputas judiciais.
A aflição de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Pedido absurdo para que supermercados não subam preços, com aval do ‘liberal’ Guedes, mostra umpresidente atônito ante a possibilidade de derrota eleitoral
O absurdo apelo do presidente Jair
Bolsonaro e de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, para que os
supermercados congelem os preços até o fim do ano para conter a inflação revela
um candidato em pânico diante das pesquisas que mostram seu principal adversário
se distanciar na liderança. A despeito de tudo o que tem dito e feito para
controlar alguns preços essenciais da economia, a posição de Bolsonaro no
quadro eleitoral piora a cada novo resultado, pois suas pretensas soluções ou
são danosas ou inócuas. Além disso, o apelo expõe um ministro que se dizia
liberal, mas que, como cabo eleitoral de seu chefe, propõe o controle de
preços, de que ele foi, com razão, um crítico incansável.
“Um apelo que faço aos senhores, para toda
a cadeia produtiva, é para que os produtos da cesta básica, cada um obtenha o
menor lucro possível para a gente poder dar uma satisfação a uma parte
considerável da população, em especial os mais humildes”, pediu Bolsonaro, com
sua sintaxe peculiar, ao falar para os participantes de um evento da Associação
Brasileira dos Supermercados (Abras). Guedes foi mais enfático: “Nova tabela de
preços, só em 2023. Trava os preços. Vamos parar de aumentar os preços por dois
ou três meses. Estamos em uma hora decisiva para o Brasil”.
São frases que lembram os tempos do governo
Sarney (1985-1990), que, sob a alegação de combater a inflação, tabelou e/ou
congelou preços e apelou à população para denunciar estabelecimentos que
estivessem praticando aumentos. Era o tempo dos “fiscais do Sarney”. Seus resultados
mais óbvios foram a desorganização da economia e a hiperinflação.
Bolsonaro está obcecado com as pressões
inflacionárias, por causa de seu forte impacto eleitoral. A maioria da
população aponta o governo como responsável pela alta dos preços. Por isso,
Bolsonaro viu na tentativa de conter os preços dos combustíveis um meio de dar
alguma resposta aos eleitores prejudicados pela alta da gasolina, do óleo
diesel e do gás de cozinha. Tem culpado os governadores, atribuindo a alta dos
preços aos impostos estaduais, ou a Petrobras, por sua política de preços que
considera “insensível”, omitindo ou ignorando deliberadamente os fatores
externos que fazem subir a cotação do petróleo e seus derivados.
Sem saber o que fazer diante da inflação,
que corrói suas pretensões eleitorais, o presidente parece estar perdido, como
também parece estar seu ministro da Economia. Com o apelo para que o comércio
varejista congele seus preços, passa a mostrar também desespero. Se a inflação
continuar alta, parece argumentar, o populismo lulopetista pode voltar.
Seu esforço para se mostrar competente e
determinado na defesa dos menos favorecidos – cujo número, como se sabe,
aumentou exponencialmente sob seu governo, como mostra o total de brasileiros
que passam fome – tem sido comoventemente hercúleo. No entanto, longe de estar
preocupado com a situação da população, que nunca levou em conta, Bolsonaro
está mesmo preocupado consigo e com seus familiares.
Sabe que, quanto maior for a diferença
entre ele e o líder das pesquisas eleitorais, o igualmente populista (com sinal
trocado) Luiz Inácio Lula da Silva, maior será a perda de aliados, aqueles que
lhe evitaram dificuldades políticas no Congresso em troca do domínio de boa
parte do Orçamento da União. E já surgem sinais de desunião, para dizer o
mínimo, até no grupo de confiança do presidente.
E eles surgem justamente no núcleo mais
próximo do chefe do governo, o núcleo familiar. Têm sido frequentes informações
de que os dois filhos mais velhos do presidente, Flávio e Carlos, já estão se
desentendendo a respeito da qualidade das peças publicitárias da campanha pela
reeleição.
Ainda há tempo para que os responsáveis
pela campanha de Bolsonaro ajustem os parafusos soltos, mas os obstáculos são
muitos – a começar não pela inflação, mas pela cada vez mais evidente
incapacidade do presidente de governar. Se a melhor resposta que Bolsonaro pode
dar à alta dos preços é o congelamento, não há razão nenhuma para
reelegê-lo.
‘Greenwashing’, ou o mau capitalismo
O Estado de S. Paulo
A adoção de valores e práticas de ESG, reflexo das crescentes preocupações ambientais, não pode sercompromisso vazio
A crescente preocupação ambiental,
impulsionada por evidências cada vez mais robustas sobre o risco de colapso do
planeta se nada for feito, vem mudando o comportamento de consumidores,
investidores, empresários e governos mundo afora. Com razão, a agenda da
sustentabilidade avança, à medida que mais pessoas tomam consciência de que a
proteção do meio ambiente envolve tanto os seus próprios hábitos de consumo
quanto a atuação de agentes econômicos ao longo de todas as etapas de
produção.
Em maior ou menor grau, a humanidade vem
encarando o desafio de conciliar desenvolvimento econômico e proteção
ambiental. O que passa por decisões de ordem macro, como rever a matriz
energética, e outras de caráter individual, que exigem mudanças de
comportamento.
Diante de consumidores e investidores cada
vez mais atentos à sustentabilidade, empresas abraçaram o conceito de ESG,
sigla em inglês para “environmental, social and governance” (ambiental, social
e governança, em tradução livre). A ideia é que o mundo corporativo assuma
responsabilidades bem maiores em relação às questões ambientais, sociais e de
governança. O que pode incluir, por exemplo, decisões como não comprar insumos
de quem desmata, adotar práticas de compliance ou promover a inclusão social,
de maneira que o perfil dos colaboradores reflita a diversidade da sociedade.
O pano de fundo, claro, é a
sustentabilidade, começando pela do planeta, mas não só. O que está em jogo
parece ser também o futuro dos próprios empreendimentos. A longo prazo,
empresas que se guiam por ESG podem ser mais resilientes – além de atraírem a
simpatia de clientes preocupados com a preservação ambiental, o que resultará
em maior volume de negócios.
Nesse cenário, infelizmente, não falta quem
tente tirar vantagem da conscientização ambiental, travestindo-se de adepto de
ESG, sem, na verdade, seguir a cartilha. O fenômeno se espalhou de tal maneira
que ganhou até um termo próprio, também em inglês: greenwashing. A
tradução literal seria “lavagem verde”, mas “maquiagem verde” soa melhor. O
que, em bom português, quer dizer propaganda enganosa.
É isso que ocorre quando uma empresa dá a
entender que faz mais pelo meio ambiente do que a verdade dos fatos permitiria
afirmar. Sem dúvida, há diferentes formas de greenwashing: desde apregoar
virtudes ambientais a um produto sem que necessariamente existam evidências
disso até deliberadamente falsear dados para enganar o consumidor. Outra
possibilidade é desenvolver um produto ou investir em uma ação ambientalmente
responsável para encobrir ações devastadoras e sem compromisso ambiental por
parte do mesmo grupo. O mesmo vale para fundos de investimentos que se
apresentam com selos ESG ou similares − a fim de atrair a atenção de quem se
preocupa com a agenda verde −, mas injetam recursos em projetos poluentes.
A economista e gestora de patrimônio
Fernanda Camargo resumiu o problema em recente artigo no E-Investidor do Estadão.
O título do texto diz tudo: A agenda ESG e o G de Ganância. A economista
se referia a uma reportagem do jornal Financial Times sobre a recusa
de investidores a apoiar maiores restrições ao financiamento de combustíveis
fósseis em alguns dos principais bancos dos EUA. “O mundo está cheio de boas
intenções e investidores gananciosos”, resumiu ela.
O presidente do Conselho de Administração
do Santander, Sérgio Rial, bateu na mesma tecla. Conforme o jornal Valor,
ele chamou de “hipocrisia ética” o comportamento de investidores que defendem a
agenda ambiental, mas não estão dispostos a abrir mão de uma ínfima parcela da
taxa de retorno, na hora de canalizar dinheiro para os chamados investimentos
verdes no mercado de capitais. “O investidor não está preparado para receber
menos por bônus verde”, disse Rial no Congresso Mercado Global de Carbono –
Descarbonização & Investimentos Verdes, no Rio de Janeiro.
A busca pelo lucro é a essência do
capitalismo e da livre-iniciativa, e os únicos limites para isso são os de
caráter ético e legal. Assim, não há nada de errado quando empresas adotam
medidas ambientalmente responsáveis sem abrir mão do lucro; o problema é quando
empresas simulam preocupação ambiental apenas para lucrar.
Brasil fica atrás na corrida mundial
O Estado de S. Paulo
Efeito da guerra e da covid é global, mas o desempenho brasileiro segue inferior ao da maioria dos emergentes e ricos
O mundo vai mal, com as condições
econômicas afetadas pela invasão da Ucrânia e pelos novos casos de covid-19. O
Brasil, sem surpresa, continua em condições piores que as da maior parte dos
países emergentes e avançados, como estava antes da pandemia e da guerra
iniciada pelo presidente russo, Vladimir Putin. O Banco Mundial até elevou o
crescimento estimado para o Brasil em 2022, mas de 1,4% para 1,5%, pouco mais
da metade da taxa prevista para a produção global, agora reduzida de 4,1% para
2,9%. Bem mais fraco é o desempenho calculado para a economia brasileira pela
OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico: expansão de
apenas 0,6% para o Produto Interno Bruto (PIB), um quinto do esperado para o
produto mundial, 3%, contra 4,5% projetados em dezembro.
Mais inflação, piores condições de
financiamento, menor crescimento e maiores provações para as populações mais
pobres compõem o cenário apresentado pelas duas instituições. Segundo o
presidente do Banco Mundial, David Malpass, em muitos países será difícil
evitar a recessão. O mais urgente, agora, é evitar uma crise de alimentação ocasionada pela
alta de preços, escreveu a economista-chefe da OCDE, Laurence Boone.
Inflação, desemprego elevado e perda de
renda do trabalho estão entre os grandes obstáculos ao crescimento brasileiro
neste ano, segundo a análise da OCDE. A forte retomada inicial da economia,
favorecida no ano passado pela vacinação, perdeu impulso neste ano. O ritmo
poderá aumentar para 1,2% em 2023, mas ainda continuará bem abaixo das médias
global e do Grupo dos 20 (G-20), ambas estimadas em 2,8%.
Os preços ao consumidor continuarão subindo
velozmente no Brasil, embora em ritmo inferior ao atual. As projeções da OCDE
apontam variação de 9,7% neste ano e de 5,3% no próximo. São números pouco
superiores aos do mercado, citados no boletim Focus do Banco Central: 8,9% em
2022 e 4,4% em 2023. Mas são bem mais altos do que aqueles previstos para quase
todos os membros da Organização. Nove países aparecem com taxas maiores que as
do Brasil, nas estimativas para este ano. A maior alta é a da Turquia (72%),
seguida por aquela calculada para a Argentina (60,1%). O nono país em pior
posição que a brasileira, nesse conjunto, é a Hungria, com inflação esperada de
10,3%.
Também se mencionam as incertezas da fase
eleitoral e a piora dos sentimentos. Essas incertezas devem desestimular o
investimento neste ano, baixando o ritmo de atividade e retardando o aumento da
capacidade produtiva. Desajustes nas cadeias produtivas e aumentos de preços de
matérias-primas estão entre os efeitos atribuídos à guerra na Ucrânia. O quadro
inclui também a irregularidade das chuvas e suas consequências na agricultura e
na geração de eletricidade.
Problemas podem variar, como o surgimento,
por exemplo, da guerra na Ucrânia ou de uma pandemia, mas chama a atenção a
constância, há cerca de dez anos, do desempenho brasileiro abaixo das médias
internacionais. Eis um bom tópico para as eleições deste ano.
Maquiar dados não acabará com tragédia
ambiental na Amazônia
O Globo
Os dados que atestam o avanço da devastação
na Amazônia, produzidos por órgãos oficiais de competência reconhecida, se
tornaram ainda mais incômodos para o Planalto neste ano eleitoral. Por isso não
surpreende que o governo procure sufocá-los a todo custo. É o que faz ao criar
uma Câmara Consultiva Temática “para qualificar os dados de desmatamento e
incêndios florestais”.
O objetivo, segundo a resolução publicada
no Diário Oficial da União, é “diferenciar crimes ambientais de outras
atividades, utilizando bases de dados oficiais já existentes”. A câmara será
coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente e terá representantes das pastas de
Agricultura, Defesa, Economia e Justiça. Poderá convidar especialistas de
instituições públicas e privadas, além da sociedade civil, mas eles não terão
direito a voto. Curioso é que o prazo de vigência é de apenas um ano.
A iniciativa despertou críticas de
ambientalistas. Primeiro, porque estão fora da comissão órgãos como Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que
têm reconhecida capacidade técnica no assunto. Segundo, porque ela se propõe a
fazer o que já é feito. O Inpe reúne há décadas dados detalhados sobre
desmatamento, até em tempo real, permitindo uma fiscalização imediata. Além
disso, essa burocracia pode atrasar a divulgação dos dados.
Desde que assumiu, Bolsonaro se empenha para desqualificar os dados do Inpe. No primeiro ano de mandato, demitiu seu diretor, o físico Ricardo Galvão, porque não gostou dos números apontados com base em métodos científicos. Disse que eles faziam campanha contra o Brasil. Galvão saiu, e as estatísticas só pioraram, porque é impossível mudar a realidade. Em 2020, o vice Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia Legal, chegou a afirmar que um opositor do governo no Inpe só divulgava dados negativos.
No universo paralelo de Bolsonaro, os
sucessivos recordes de devastação na Amazônia não condizem com a realidade. No
encontro com o empresário Elon Musk no mês passado, o presidente repetiu essa
fantasia ao anunciar a intenção de usar a Starlink de Musk no monitoramento da
Amazônia (depois não se tocou no assunto). Bolsonaro disse que contava com Musk
para mostrar como a Amazônia “é preservada” e “quanto malefício causam aqueles
que difundem mentiras sobre a região”.
No mundo real, os números do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) mostram que, entre agosto de 2018 e julho
de 2021, o desmatamento na região cresceu 57%. Cenário previsível, diante da
leniência com madeireiros, grileiros e garimpeiros ilegais, do desmonte dos
órgãos ambientais, do alívio na legislação e da redução das multas. Bolsonaro
pode criar comissões para “qualificar” os dados ambientais que quiser, à
revelia das instituições idôneas que há anos os coletam. Mas não adianta
maquiar os números às vésperas da eleição. Os danos da política antiambiental
não desaparecerão num passe de mágica.
Brasil precisa de mais racionalidade nas
suas prisões
O Globo
A pandemia levou o Brasil ao recorde
histórico de 919.651 presos. Entre abril de 2020 e maio de 2022, os presídios brasileiros receberam 61 mil novos detentos, aumento
de 7,6% segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Tal população encheria
uma cidade como São Borja (RS). Saltaria facilmente a casa do milhão se somados
os 352 mil mandados de prisão em aberto (24 mil de foragidos).
A primeira — e óbvia — conclusão é que não
há espaço para tanta gente na prisão. As cadeias estão abarrotadas, e a chegada
de novos presos cresce mais que as vagas. De acordo com o Departamento
Penitenciário Nacional (Depen), os presídios brasileiros dispõem de metade das
necessárias (453.942). Desde o início do governo Bolsonaro, foram criadas
míseras 12.587.
Claro que a impunidade é uma chaga
nacional. Numa sociedade aterrorizada pela violência, bandidos que matam,
roubam, estupram ou desviam verba pública precisam ser presos. Também é fato
que a legislação penal brasileira é demasiado leniente com criminosos e
bandidos poderosos que pagam a bons advogados para aproveitar brechas da lei.
Por isso o pacote anticrime acertou ao tornar mais rigorosas as regras para
progressão de regime. Mas, ao aumentar o tempo médio de encarceramento — de
três a cinco anos para seis a dez anos —, ampliou também a população
carcerária.
Simplesmente pôr mais gente na cadeia pode
ser contraproducente, sobretudo quando se trata de gente presa por infrações
menores, como porte de drogas ou pequenos furtos. O Brasil gasta com prisões o quádruplo do que destina à educação
básica, segundo um levantamento da Universidade de São Paulo (cada
preso custa R$ 1.800 por mês; cada aluno, R$ 470).
Dominados pelas facções criminosas, os
presídios se tornaram fornecedores de mão de obra para o crime organizado.
Traficantes e milicianos comandam seus negócios de dentro das prisões. Difícil
imaginar que alguém se ressocializará num ambiente desses.
Cerca de 45% dos presos são provisórios,
ainda não sofreram condenação definitiva, diz o desembargador Mauro Martins,
responsável no CNJ por contar a população carcerária. Muitos permanecem presos
mais tempo do que ficariam em caso de condenação. Isso acontece também porque
os juízes tentam compensar as falhas da legislação penal, afastando do convívio
social presos reconhecidamente perigosos.
O contingente de presos poderia ser menor
se os presídios fossem controlados pelo Estado e reservados a criminosos que
representam ameaça real à sociedade. Estima-se que 42% das mulheres e 24% dos
homens presos estão atrás das grades por ter sido flagrados com pequenas
quantidades de drogas, resultado de uma Lei Antidrogas que não distingue
traficante de usuário.
O encarceramento maciço, é forçoso
constatar, também não tem reduzido a criminalidade, como reconhece o próprio
CNJ. Como os crimes não cessam, a tendência é os presos aumentarem
indefinidamente. Mais que lamentar o tamanho da população carcerária (434
presos por 100 mil habitantes, que colocaria o país em nono lugar no ranking do
World Population Brief), o Brasil deveria se perguntar se todos realmente
precisariam estar num presídio, gerando custos ao Estado e servindo de mão de
obra ao tráfico. Talvez a solução não esteja no aumento de vagas, mas em buscar
um sistema de encarceramento mais racional e eficaz.
Antecipar receita futura do pré-sal cria
ilusão fiscal
Valor Econômico
Governo federal enviou ao Congresso Nacional
projeto de lei que, se aprovado, autoriza a venda, por meio de leilões, do
excedente de petróleo e gás ao qual a União tem direito
Na semana passada, o governo federal enviou
ao Congresso Nacional projeto de lei que, se aprovado, autoriza a venda, por
meio de leilões, do excedente de petróleo e gás ao qual a União tem direito nos
contratos de exploração de petróleo pelo regime de partilha. A proposta é
polêmica, uma vez que, na prática, resultará na antecipação de receitas que só
entrariam no caixa do Tesouro Nacional no futuro, à medida que, efetivamente,
houvesse excedente de produção em relação ao previsto nos contratos originais.
O Brasil tem dois marcos legais de
exploração de petróleo: o regime de concessão e o de partilha. O primeiro
estabelece que todo o petróleo encontrado na área leiloada pela Agência
Nacional de Petróleo (ANP) pertence à empresa ou consórcio que venceu o leilão.
Neste modelo, a União é remunerada pelo valor da outorga e pela cobrança de
participações especiais e royalties ao longo da exploração daquele campo - as
PEs e os royalties são pagos também aos Estados e municípios onde estão
localizadas as áreas de exploração.
O regime de partilha foi instituído no
início da última década. Como a quantidade de petróleo encontrada nos primeiros
campos de pré-sal leiloados superou com folga as estimativas, foi estabelecido
na lei que instituiu o novo regime que os excedentes descobertos são
propriedade da União.
Até o ano passado, os excedentes foram
modestos e, por isso, não chamaram a atenção de Brasília. Chama-se óleo-lucro a
parte que o governo federal tem direito a receber quando se comprova a
ocorrência de excedentes na extração de petróleo e gás natural. Em 2021, o
óleo-lucro somou apenas R$ 1,2 bilhão, mas, novas estimativas indicam que possa
a chegar a R$ 92,26 bilhões em 2030, o equivalente a 0,9% do PIB.
A estimativa é a de que, em 2030, dois
terços da extração de petróleo do Brasil venham do pré-sal. Especialistas
calculam que a receita de óleo-lucro contribuirá para dobrar a receita bruta da
União com o setor extrativo mineral até o fim desta década, quando comparada ao
período entre 2011 e 2020.
Da maneira como o governo Bolsonaro
pretende antecipar receitas futuras do óleo-lucro, conforme indica no projeto
de lei enviado ao Congresso, essa receita pode somar R$ 332,1 bilhões no
período de 2023 a 2030, em valores de 2021, considerando o preço barril do
petróleo (Brent) a US$ 65 a partir de 2024. Equivale a 3,8% do PIB de 2021.
Este cálculo é do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre).
As projeções consideraram as previsões de
produção divulgadas pela PPSA, a estatal responsável pela comercialização da
parte da União no petróleo e gás produzidos no pré-sal. “Além de haver grau de
contingência envolvido, essas receitas começaram a se materializar no ano
passado, mas passarão a ganhar mais relevância na segunda metade desta década”,
disse Borges ao Valor.
O projeto, segundo justificou o governo,
pretende desvincular a arrecadação da destinação estabelecida na lei do pré-sal
para gastos com educação e saúde.
O problema é que objetivo do governo pode
ir além do aspecto positivo da proposta. Bráulio Borges lembra que ao fim de
2021 a flexibilização no teto de gastos da União envolveu o adiamento da
despesa com precatórios. Essa conta, lembra, deve ser paga em 2027. Se houver
antecipação de receitas, essa despesa virá de uma só vez e há risco de o
governo federal não ter mais o acréscimo de arrecadação que o aumento de
produção de petróleo pelo regime de partilha permite projetar.
Manoel Pires, coordenador do Observatório
de Política Fiscal do Ibre, aponta que toda antecipação de receita é uma forma
de antecipar resultado fiscal ou de antecipar recursos para financiar despesas.
Segundo o Ministério da Economia, a cessão
de direitos da União só poderá se concretizar “se houver anuência do consórcio
operador do respectivo contrato”. O objetivo da regra é “garantir o respeito
aos contratos de partilha e a segurança jurídica da transação”.
A pasta ainda esclarece que as receitas obtidas “não estarão vinculadas ao Fundo Social”. “Essa medida é importante porque, caso mantida essa vinculação, haveria ineficiência na gestão fiscal”, diz o ministério, afirmando que, “dado o volume de recursos esperados, eles não teriam contrapartida de previsão de despesas no Orçamento”. “Porém, não haverá qualquer prejuízo à execução das políticas públicas abrangidas pelo Fundo Social, uma vez que os recursos serão alocados normalmente no Orçamento público conforme as prioridades definidas pelo Congresso Nacional”, diz o ministério.
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