Eu & / Valor Econômico
Brasil convive com taxas elevadas há quatro
décadas, e isso por si já torna mais difícil mudar o parâmetro
Em fevereiro, ao criticar a manutenção da
taxa Selic em 13,75%, o presidente Lula se referiu a uma “cultura de juros
altos” que existiria no Brasil. A expressão não é nova. Foi usada pelo
industrial José Alencar em 2003, quando era vice-presidente do próprio Lula,
por ocasião de uma reunião do Copom que baixou a taxa em 2,5 pontos. Na época,
Alencar propôs uma “cruzada nacional” para reduzir os juros. Em 2011, Paulo
Skaf, então presidente da Fiesp, repetiu a fórmula, em um momento de
expectativa por uma alta que poderia chegar a um ponto percentual.
Não só os políticos consideram que o Brasil
tem taxas altas em todas as etapas da curva de juros. Uma busca por teses,
dissertações, artigos científicos e comentários de imprensa encontra facilmente
centenas de tentativas de explicar essa particularidade, publicadas desde a
década de 1980 até hoje. Não bastasse a taxa básica estar sempre entre as mais
altas do planeta em termos reais, empresas e famílias também pagam juros
inimagináveis em outros países. De acordo com levantamento feito pelo Procon,
em janeiro o juro médio para empréstimos pessoais era de aproximadamente 143%
ao ano para pessoas físicas. Para empresas, segundo dados do Banco Central, a
média está em cerca de 25%.
A ideia de que o Brasil vive uma “cultura dos juros altos” expressa a percepção de que a taxa molda, em certa medida, o sistema financeiro e até mesmo a economia real do país. “Essa expressão é interessante, porque reflete como convivemos com os juros altos nas nossas transações concretas, para fazer um empréstimo, comprar uma casa, um carro, ou nas aplicações financeiras. Esperamos juros altos dos dois lados, ao aplicar e ao pagar. É um hábito, parte do dia a dia”, afirma o economista Fabio Bittes Terra, da Universidade Federal do ABC e coautor do livro “Selic: o mercado brasileiro de dívida pública”.
Quarenta anos de queixas, debates e
pesquisas sobre o juro brasileiro renderam análises variadas sobre causas e
consequências. Pelo lado das primeiras, citam-se o desequilíbrio fiscal
persistente, as necessidades de financiamento do Estado, o histórico de
inflação elevada e a necessidade de atrair capital estrangeiro. Para o
economista Fernando de Holanda Barbosa, da Escola Brasileira de Economia e
Finanças da Fundação Getulio Vargas (EPGE-FGV), que publica pesquisas sobre as
taxas de juros brasileiras desde a década de 1980, a noção de “cultura dos
juros altos”, na verdade, é reflexo da sucessão de crises fiscais que o país
enfrenta desde o início da década de 1960, sem jamais resolver de forma
permanente.
Barbosa enumera essas crises: a da segunda
metade dos anos 1970, que desembocou na moratória da dívida na década seguinte;
as turbulências dos anos 90, quando o Brasil padeceu com surtos de fuga de
capital no México, na Rússia e nos tigres asiáticos; a profunda recessão
iniciada em 2014. Esta última, diz, não teve suas consequências fiscais
devidamente combatidas por nenhum dos governos posteriores, que apenas
“empurraram o problema adiante”.
A situação reflete, por sua vez, uma outra
cultura, argumenta Barbosa: a dos privilégios. Os déficits do governo são
causados pela facilidade com que grupos de pressão se apropriam de nacos do
orçamento público. Nesse cenário, a própria taxa de juros acaba servindo à
perpetuação de vantagens para segmentos sociais. “Os juros altos no Brasil não
são uma loucura, uma coisa absurda que acontece por acaso. São produzidos pela
sociedade, à medida que grupos de interesse conseguem garantir privilégios. Não
é culpa do Banco Central ou seu presidente”, afirma.
Segundo o economista José Luis Oreiro, da
Universidade de Brasília, não há um mecanismo direto que leve do déficit fiscal
ou da dívida pública à taxa de juros. Se a Selic, taxa de curto prazo, responde
à necessidade de manter a inflação dentro da meta definida pelo Conselho
Monetário Nacional, os juros de prazos mais longos expressam as expectativas do
mercado financeiro para a política monetária dos anos seguintes. “Um déficit
fiscal pode levar a uma economia sobreaquecida, com excesso de demanda, e isso
exige que o Banco Central eleve os juros, para retirar demanda da economia. Não
é uma questão de déficit ou dívida”, argumenta. “O experimento natural foi a
pandemia, quando o governo fez um déficit de R$ 800 bilhões e os juros reais
ficaram negativos”, diz.
Para Oreiro, o que relaciona a situação
fiscal à inflação é o “impulso fiscal”, a diferença no resultado primário de um
ano para o seguinte. “Houve um impulso forte de 2019 para 2020, que evitou uma
queda ainda maior do PIB durante a pandemia. Hoje, porém, a economia brasileira
opera com capacidade ociosa e não tem como um impulso fiscal trazer pressão
inflacionária”, diz.
Contudo, o que Lula e seus predecessores
dizem ao evocar a ideia de “cultura” dos juros altos aponta mais para as
consequências do que para as causas: a economia brasileira teria se acostumado
com a permanência dessa particularidade e até mesmo se tornado dependente dela.
Essa dependência se manifesta na complexa trama de aplicações que mantêm ganhos
reais significativos apesar de atreladas à taxa básica, que em outros países
remunera de forma modesta.
Segundo Terra, o Brasil tem uma parcela
desproporcionalmente alta de ativos financeiros vinculados à taxa básica. “As
pessoas se acostumaram a procurar a Selic como elemento de remuneração dos seus
investimentos financeiros, bem mais do que a renda variável ou outras formas de
investimento, não financeiros, como o ouro, o mercado imobiliário ou as ações”,
explica. O fenômeno começa pela dívida pública federal, em que cerca de 40% dos
títulos têm taxa flutuante e respondem a variações da Selic. No mercado financeiro,
predominam contratos vinculados ao DI (depósito interfinanceiro), que acompanha
de perto a taxa do Banco Central.
A prevalência de títulos indexados à Selic
produz um ciclo vicioso, por ser um fator que reduz a eficácia da política
monetária, através do “efeito-contágio” da política monetária sobre a dívida
pública, diz Barbosa. Quando o governo decide aumentar ou baixar os juros para
controlar a inflação, o custo da dívida sobe ou desce proporcionalmente, em
razão dos títulos indexados. Outro efeito paralelo é enfraquecer o
efeito-riqueza, pelo qual, para a dívida pré-fixada, o aumento dos juros reduz
o valor de títulos já existentes, de taxa menor. A consequência é que os
detentores de papéis sentem que sua riqueza diminuiu e têm menos condições de consumo,
o que reforça o mecanismo pelo qual os juros esfriam uma economia. Com os
títulos atrelados à Selic, ocorre o inverso: os detentores desses papéis veem
seu retorno aumentar com a alta dos juros e, por isso, têm mais condições de
consumir, o que implica um aquecimento, e não um esfriamento, da economia.
O resultado desses dois efeitos é que os
tratamentos anti-inflacionários do BC, por meio da taxa de juros, têm que ser
mais fortes do que o normal, na tentativa de contrabalançar a eficácia
diminuída dos mecanismos de transmissão. Barbosa observa, no entanto, que, além
da frequente necessidade de manter uma política monetária contracionista para
controlar a inflação, a própria taxa de juros dita “natural” do Brasil é alta.
A taxa natural é um conceito que representa
os juros necessários para manter investimento e poupança equilibrados quando a
economia está em pleno emprego. Em economias pequenas e abertas, como a
brasileira, ela é a taxa praticada no mercado internacional, acrescida do
prêmio que os investidores exigem pelo risco que acreditam ter ao colocar
recursos naquele mercado. Assim, o que mantém a taxa natural alta é, em grande
medida, o risco-país, índice que expressa a diferença entre o juro pago nos
títulos do Tesouro americano e o dos títulos brasileiros, com a sigla EMBI+.
Atualmente, o risco-Brasil gira em torno de 250 pontos base, ou 2,5 pontos
percentuais. Em momentos de otimismo com a economia e a situação fiscal do
país, chegou a ficar abaixo de 140 pontos, em 2007 e 2012.
“Esse problema deveria ser enfrentado
fazendo desaparecer a crise fiscal. Com isso, o risco-país cairia. E quando o
risco-país cair, certamente a taxa de juros vai cair também”, diz Barbosa. A
emissão de títulos da dívida é uma alternativa para a impressão de moeda pura e
simples no financiamento do déficit, diz. Esta última foi a receita praticada
no Brasil durante décadas, com a inflação galopante como resultado, e até hoje
um problema para a Argentina. “Quem compra esses papéis? Em geral, a poupança
privada. Com isso, ela deixa de financiar investimento produtivo para financiar
o governo”, resume. “É por isso que a consolidação fiscal permitiria aumentar o
investimento: quando a poupança privada for ao sistema financeiro, vai
encontrar papéis do setor privado voltados para o financiamento do
investimento.”
O economista da FGV julga, no entanto, que
nem o arcabouço fiscal anunciado pelo atual governo nem o teto de gastos
instituído em 2016 seriam capazes de levar os juros a um patamar mais
compatível com o que é praticado ao redor do mundo. Ambas as iniciativas são
gradualistas, prevendo que o equilíbrio das contas públicas só será atingido
dentro de alguns anos. Barbosa crê que para tornar a dívida sustentável é
preciso chegar logo a um superávit entre 3% e 4% do PIB.
“As
pessoas acreditam que uma consolidação fiscal que pode chegar a 5% do PIB é
inviável politicamente. Mas sustento que só depois de um esforço como essa
terapia de choque será possível voltar a ter uma expansão em torno de 4%. Se um
governo seguir esse caminho logo em seu primeiro ano, ao final do mandato vai
colher os louros do crescimento mais acelerado”, diz.
Sejam quais forem as causas da duradoura
era de juros altos brasileira, as análises são unânimes na avaliação de que
essa característica financeira molda, em parte, a economia do país como um
todo. Ao oferecer rentabilidade alta para investimentos de baixo risco,
favorece a escolha pela riqueza financeira, no fenômeno que alguns economistas
denominam “rentismo”. Esse direcionamento é uma das causas da baixa taxa de
investimento em infraestrutura, expansão da capacidade produtiva ou inovação.
Descendo um pouco mais na cadeia causal,
encontramos a insuficiente geração de empregos de qualidade, a alta taxa de
informalidade e a perda de competitividade do setor produtivo. Como esses
problemas permanecem por períodos prolongados, alguns analistas falam em
“histerese” - conceito da física que descreve a tendência de um sistema a
perdurar em um estado, na ausência de novos estímulos. Na economia, designa uma
situação em que uma economia que roda abaixo do potencial, com desemprego alto
e investimento insuficiente, se torna incapaz de retornar ao crescimento em
ritmo satisfatório, entre outros motivos por que os trabalhadores perdem
qualificação e as empresas ficam para trás na competição internacional.
Do outro lado da curva, se o juro pago pelo
Estado aos investidores é alto, a taxa que recai sobre comerciantes, famílias e
pequenos produtores, as chamadas taxas do varejo, são muitas vezes ditas
“estratosféricas”. Entre as causas para o alto spread bancário, citam-se o
risco de inadimplência, o forte endividamento das famílias e a baixa
concorrência entre bancos. Um problema também renitente é o pouco efeito das
variações da taxa básica da economia sobre aquelas praticadas no varejo: se o
crédito bancário para empreendedores chega a cobrar 2,5% de juros ao mês e o
cheque especial pode ultrapassar 200% ao ano, qual é a diferença, na vida
prática, de uma Selic a 13,75%, a 13,5% ou 13,25%?
De acordo com Terra, os juros do varejo,
seja para o consumidor ou o empresário, teriam pouca variação, porque a
sensibilidade às mudanças da taxa do atacado é baixa. A causa está, entre outras,
nas características que compõem a ideia da cultura de juro alto. “As pessoas
estão habituadas a pagar juros altos, porque o juro sempre foi alto no Brasil.
Em geral, as famílias estão endividadas não porque querem, mas porque a renda
no país é baixa, então é preciso apelar muito ao crédito para comprar as coisas
ou resolver os fins de mês”, afirma.
Por outro lado, uma redução da Selic teria
mais efeito sobre o custo de financiamento de projetos na economia real e a
remuneração de investimentos que, embora vinculados à economia real, respondem
às variações da taxa básica por meio do CDI (certificado de depósito
interbancário), como LCIs (letras de crédito imobiliário) e LCAs (letras de
crédito agrícola) pós-fixadas. Como a remuneração no mercado de dívida teria
uma pequena queda, o custo de oportunidade de colocar recursos na economia real
também cairia discretamente.
Por outro lado, segundo Terra, o efeito da
variação da Selic sobre o custo de financiamento das empresas pode ser
enfraquecido ou anulado pelo risco fiscal embutido na TLP (taxa de longo
prazo), usada pelo BNDES em seus empréstimos. Como a TLP é parcialmente
atrelada às NTN-B (Notas do Tesouro Nacional), títulos que pagam um valor fixo
somado ao IPCA, se os agentes econômicos entenderem que há um importante risco
fiscal no futuro, a queda da Selic pode não se traduzir em queda da remuneração
das NTN-B, o que se refletiria na taxa cobrada pelo BNDES.
Isto não significa que o crescimento será
baixo sempre que os juros estiverem altos, alerta Terra. A taxa de retorno dos
investimentos é determinada por outros fatores e, se for maior do que o retorno
de investimentos financeiros, pode atrair capital produtivo. De acordo com o
economista da UFABC, isto aconteceu no Brasil entre 2004 e 2008, quando a Selic
esteve quase sempre acima de 11% e mesmo assim houve um ciclo de crescimento,
com a taxa de investimento no maior nível desde a década de 1980. “Havia uma
expectativa de retorno alta, porque iniciativas como a valorização do salário
mínimo e a política de transferência de renda davam ao empresário a perspectiva
de mais consumo”, explica. “O aumento do pequeno varejo e os investimentos em
bens duráveis tiveram crescimento expressivo, enquanto o setor externo puxava a
economia.”
Ainda assim, certos investimentos de maior
risco ou mais longo prazo, como em mercados inovadores, continuam fora do
alcance, porque nesses casos o investidor exigiria um retorno altíssimo. Oreiro
acrescenta que o período de juros menos atraentes pode não ter levado a uma era
de grande investimento no setor produtivo, mas trouxe forte onda de
investimentos em imóveis. “Tivemos uma bolha imobiliária”, comenta.
Esses anos também compuseram o coração de
um longo período de superávits primários, iniciado em 1998, que perdurou até
2013. O superávit era parte do tripé macroeconômico adotado no fim da década de
1990 para manter a estabilidade da economia brasileira, junto com o câmbio
flutuante e as metas de inflação. A adoção do tripé foi acompanhada de um
ajuste fiscal, que permitiu chegar aos superávits. Nesse intervalo de 15 anos,
a Selic teve uma queda paulatina, passando de 42% em outubro de 1998 para 8,75%
em julho de 2009 e 7,25% em outubro de 2012.
Outra mudança ocorrida em torno de 1998 foi
que, com a adoção do regime de metas de inflação, em 1999, o papel
estabilizador da Selic se transformou, em parte. Até então, a personagem
principal no esforço de segurar o nível de preços era a “âncora cambial”, ou
seja, a taxa controlada, quase fixa, de câmbio entre real e dólar, que evitava uma
alta exagerada dos preços no Brasil porque os produtos importados se mantinham
acessíveis. Nesse cenário, os juros básicos tinham muitas vezes o papel de
evitar a perda de divisas, oferecendo a investidores estrangeiros uma
remuneração muito acima do que conseguiriam em outros mercados.
O Real é o “grande corte histórico” na
trajetória dos juros, segundo Oreiro, por causa do controle sobre o câmbio.
Entre 1994, quando o plano Real e a âncora cambial foram adotados, e 1999, a
Selic teve grande volatilidade, subindo e caindo ao sabor do mercado financeiro
internacional. Em 1998, no intervalo de apenas nove meses, foi fixada em
valores que variaram de 19% a 38%. Com a crise cambial no início de 1999,
chegou a 45%. Em termos reais, a taxa básica de juros permaneceu entre 20% e
25% nesses anos. Após a adoção do tripé macroeconômico, quando assumiu quase
integralmente a função de perseguir a meta de inflação, a Selic desceu, em
termos reais, para cerca de 10%.
Oreiro acrescenta que, apesar de ter
desindexado os contratos com prazo abaixo de um ano, o Real manteve a indexação
de contratos mais longos. “Até hoje, o Brasil mantém a institucionalidade do
tempo da inflação alta no sistema de contratos. [...] Essa indexação aumenta a
inércia inflacionária, o que exige uma dosagem maior de juros para colocar a
inflação na meta”, lamenta.
“A principal diferença entre os dois
períodos é que, com a âncora cambial, os juros existem quase apenas para atrair
capital estrangeiro, então eles vão a reboque do movimento internacional de
liquidez, principalmente em um país com poucas reservas cambiais, como era o
Brasil, e enfrentando um conjunto de crises externas. Como o câmbio é
administrado e não flutua, quem flutua é o juro. E muito”, declara Terra. “Com
o câmbio flexível, é possível dosar o uso dos juros. Mesmo se houver uma grande
desvalorização, a maior preocupação é com o impacto inflacionário.”
A inflação é frequentemente considerada o
grande mal econômico da história do Brasil e, no caso dos juros altos, não é
diferente. A correção monetária existe no Brasil desde 1964, com a instituição
das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), títulos de longo prazo
que deveriam proteger seus detentores da alta dos preços. Com a inflação anual
passando de 15,6% em 1974 a 40% em 1978, 77% em 179 e 100% em 1980, a corrida
para resguardar depósitos e aplicações da alta dos preços se intensificou. Começava
aí o processo que levaria à hiperinflação, aos planos de estabilização
frustrados, à “ciranda financeira” e à indexação da economia.
Na maior parte dos casos, uma economia cuja
inflação sai de controle acaba recorrendo a uma moeda estrangeira ou uma nova
divisa, lastreada em ativos mais estáveis. Aqui, não foi assim. Enquanto nos
países vizinhos os contratos passavam a ser atrelados majoritariamente ao
dólar, a “dolarização”, o Brasil encontrou um preço de referência doméstico,
segundo Terra. “O Brasil foi o único país que fez isso. Mas como? Usando a taxa
de juros como um farol, para guiar a marcação de todos os preços da economia”,
diz. No início dos anos 1980, estabeleceu-se uma relação pela qual o BC, ao
liquidar as posições dos bancos, rolava a dívida pública para refinanciar o
Tesouro Nacional no curto prazo, e não apenas para controlar os juros
praticados no mercado e a inflação. Os depósitos de particulares, por sua vez,
eram corrigidos para repor a inflação.
“Com isso, o Tesouro conseguia refinanciar
a dívida e o Banco Central marcava a taxa de juros. Ao mesmo tempo, os bancos
ganham ao intermediar os recursos entre as pessoas e o BC, e também no
‘floating inflacionário’ [a desvalorização da moeda entre depósito e saque]. E
nessa circulação de títulos públicos de curto prazo, os correntistas ganham uma
imensa fonte de proteção contra a inflação. Esse processo durou mais de uma
década”, resume Terra. Contudo, o sistema tinha um perdedor, na figura da
parcela da população mais pobre sem acesso a uma conta bancária. Essas pessoas
sofriam com o “imposto inflacionário”, que desvalorizava seus salários no curto
intervalo que levava para gastar em compras. Na década de 1980, a população
bancarizada não chegava a 40%.
Só a estabilização financeira viria a
encerrar esse sistema, a partir de 1994, mas ao custo de resgatar um setor
bancário em que vários apresentaram problemas graves de solvência. Na última
década, houve duas tentativas de reduzir o patamar dos juros. A primeira
ocorreu no governo de Dilma Rousseff, entre agosto de 2011 e março de 2013. Na
ocasião, o governo também usou os bancos públicos para tentar baixar as taxas
cobradas dos clientes particulares. O esperado pelo governo era que os
concorrentes privados se sentissem obrigados pela competição a seguir o mesmo
comportamento. O BC também tolerou uma inflação constantemente na margem
superior da meta de inflação, que na época era de dois pontos percentuais. “O
governo Dilma cometeu muitos erros nesse processo. O maior provavelmente foi
não se esforçar para que a inflação convergisse para a meta. Com o IPCA a 6% e
os juros a 7,5%, o juro real, de repente, estava em 1,5%. O investidor viu que
a taxa não compensava o risco de colocar dinheiro no país”, diz Terra.
A aceleração da Selic, a partir de então,
foi vertiginosa, chegando a 14,25% em 2015, quando o país já enfrentava uma
profunda recessão. Os juros só voltariam a cair em outubro do ano seguinte,
quando a economia ensaiava uma recuperação claudicante e o IPCA apontava que
ficaria abaixo de 3,5% no ano seguinte. Os cortes puseram o juro básico em 6,5%
de março de 2018 a junho de 2019, quando a pandemia, um período excepcional,
levou bancos centrais mundo afora a cortar ainda mais os juros, e o Brasil não
foi exceção: em agosto de 2020, a Selic chegou a 2%.
De um lado, tratava-se de um momento de
economia estagnada, penando para se recuperar da recessão: entre 2017 e 2019, o
crescimento anual ficou teimosamente em torno de 1,1%. A inflação se manteve
baixa, em cerca de 3,5%, e o desemprego atingia a casa de 12,6% em 2017. Do
outro lado, 2016 foi o ano da aprovação da rigorosa, e agora malsucedida, regra
de controle fiscal, a emenda constitucional 95, mais conhecida como teto de
gastos. Embora não tenha durado muito e em seu primeiro ano tenha permitido uma
expansão dos gastos públicos, em vez da contração esperada para os anos
seguintes, o teto serviu ao para emitir um sinal de consolidação futura para o
mercado.
“O Brasil estava em um marasmo econômico, o
que normalmente permite a queda dos juros. Então a sociedade aceitou um juro
nominal de 6%, o que correspondia a aproximadamente 3% de juro real, algo
incomum no Brasil”, comenta Terra. “Mas é preciso acrescentar um grão de sal:
se o crescimento estava em 1%, quem alocava seus investimentos ao juro real de
3% está se beneficiando muito, relativamente ao acréscimo de riqueza do país.
Mesmo nesse momento, mantivemos o costume dos juros de pouco risco rendendo bem
acima da atividade econômica.”
O último ciclo de alta da Selic, iniciado em março de 2021, procurou responder à alta dos preços que se seguiu à crise de cadeias de produção na retomada pós-pandemia. O BC brasileiro começou a elevação antes de suas contrapartes nos países desenvolvidos e foi mais agressivo na política monetária. Para Oreiro, os indicadores atuais da inflação sugerem que um novo ciclo de baixa já poderia ter começado. “Só agora os juros reais americanos saíram do negativo. Na Europa, a inflação está mais alta do que aqui e as regras fiscais foram suspensas. Nem a inflação, nem a situação fiscal explicam que o juro real seja tão mais alto no Brasil. Então o que explica?”
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