segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Christopher Garman* - A principal lição da eleição de Milei

Valor Econômico

A vitória de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 não foi um resultado atípico ou um “surto” temporário

A vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais na Argentina dará início a uma fase muito mais difícil nas relações diplomáticas entre o Brasil e seu vizinho. No curto prazo, a maior preocupação do Planalto é com o acordo entre a União Europeia e o Mercosul. Embora as negociações estejam avançando e uma conclusão seja possível ainda este ano, o presidente eleito é crítico feroz do bloco sul-americano, e sua eleição põe dúvidas à execução do acordo.

Mas a escolha dos argentinos por um radical libertário, que defende a dolarização da economia e chamou o Papa Francisco de “maligno na terra”, diz muito sobre o ambiente de opinião pública na América Latina - embora a lição não seja a que parece à primeira vista.

No ciclo eleitoral de 2021-2022, Chile, Peru, Colômbia e Brasil elegeram governos de esquerda, sugerindo uma “onda vermelha”, ou rosa, na região. Agora, a direita estaria retomando posições, com as eleições de Milei e de Daniel Noboa, no Equador, e as dificuldades enfrentadas pelos governos de esquerda no Chile, Peru e Colômbia.

Mas esse tipo de análise ignora que essa alternância é na verdade resultado de um ambiente de grande revolta e profundo desencanto. Eleitores não estão migrando entre a esquerda e a direita: estão demonstrando sua enorme insatisfação com o sistema político, instituições como o Judiciário, a mídia, os ricos e poderosos. Prevalece o candidato que se opõe ao governo de turno, e que os eleitores veem como possuidor de credibilidade para lutar contra o “sistema”.

Na Argentina, a oposição começou a campanha em vantagem diante do fracasso econômico do governo peronista. Mas o que permitiu que ele fosse mais bem-sucedido que a candidata de centro-direita, Patricia Bullrich, foi sua retórica beligerante contra um sistema “corrupto e falido”.

Um levantamento anual da Ipsos Public Affairs feito em 25 países, incluindo industrializados e emergentes, mostra que uma grande parcela do eleitorado acredita que “o sistema está quebrado”. Nos locais avaliados, 64% da população acredita que suas economias estão estruturadas para beneficiar os ricos e poderosos; 63% dizem que políticos não se importam com pessoas comuns; 59% acham que precisam de um líder forte para tirar o país das mãos dos ricos e poderosos; e 45% desejam um líder disposto a “quebrar as regras” se necessário.

Esses números têm se mostrado bem consistentes desde o início da pesquisa, em 2016 - e mais elevados na América Latina. Pesquisas qualitativas sugerem que a origem desse sentimento na região seja a frustração de expectativas de uma classe média que cresceu tremendamente durante o boom das commodities (2004-2012). Durante essa fase de crescimento robusto, as preocupações das famílias migraram para temas como segurança, saúde e educação.

A competitividade de candidatos que nutrem a imagem de alguém que luta contra o sistema continuará forte

Desde então, eleitores vêm associando cada vez mais serviços públicos ruins à corrupção. Não por acaso, foi no Chile, país com crescimento econômico mais exitoso, que aconteceram as maiores manifestações populares, que levaram a duas constituintes. Evidentemente, a revolta cresce em períodos de crise econômica, como visto na Argentina. Mas o que ocorreu no Chile mostra que esse desencanto tem raízes mais profundas.

Desse diagnóstico, é possível tirar três conclusões.

A primeira é que a competitividade de candidatos que nutrem a imagem de alguém que luta contra o sistema continuará forte. A vitória de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 não foi um resultado atípico ou um “surto” temporário no rescaldo da Lava-Jato, mas parte de um fenômeno que vai além do Brasil e extrapola os aspectos conjunturais. Candidatos de partidos de esquerda não tradicionais, ou que fizeram campanha por mudanças profundas, foram eleitos no Chile, Peru e Colômbia no último ciclo eleitoral. A direita fez o mesmo agora, na Argentina e Equador.

No Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que parte de um partido tradicional, se projetou como “vítima” de um establishment que o colocou na prisão - e fez uma campanha mais forte contra os ricos e poderosos do que em pleitos anteriores. Tanto Bolsonaro como Lula se posicionaram contra os donos do dinheiro e do poder - a diferença foi o alvo escolhido. Bolsonaro teve a mídia e Judiciário como alvos, e Lula os ricos. Isso sugere que o apelo de Bolsonaro não vai se dissipar tão cedo. Mesmo que ele não possa concorrer em 2026, o candidato que ele eventualmente apoiar terá vantagem considerável, dificultando as chances de um postulante moderado de direita.

A segunda é que esse ambiente eleitoral sugere que estamos vivendo uma era de governos mais fracos. Candidatos que investem em uma imagem contra o sistema são mais competitivos. Os que perpetuam essa imagem no poder têm mais êxito na busca por popularidade (veja Manuel Lopez Obrador no México). Mas isso geralmente se traduz em demandas muito difíceis de satisfazer, e em ambientes sociais mais polarizados e divididos. Os presidentes recém-eleitos no Brasil, Chile, Colômbia e Peru iniciaram seus mandados com taxas de aprovação abaixo de 60%, um patamar relativamente baixo historicamente. E, no caso dos três últimos, esse apoio caiu abaixo 40% depois após ano e meio de mandato.

Na Argentina, as dificuldades do ajuste econômico que está por vir agravam o desafio do presidente eleito. Para dolarizar a economia, Milei terá que encampar um ajuste fiscal enorme em meio de uma inflação ainda galopante. A sensação de bem-estar econômico vai cair no primeiro ano de mandato, exacerbando as dificuldades políticas para o governo, que não tem maioria no parlamento. A capacidade de fazer grandes mudanças nesse ambiente é baixa.

Por fim, é preciso muita cautela ao concluir que esses movimentos políticos, sejam à direita ou à esquerda, colocam em risco a democracia. Instituições democráticas geralmente correm mais perigo quando lideranças têm grande apoio popular, e usam esse domínio no campo político para centralizar poder na mão do Executivo, a exemplo da Venezuela - não sob governos mais fracos.

*Christopher Garman é diretor-executivo para as Américas do grupo Eurasia.

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