segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Marcus André Melo* - Milei e o inédito presidencialismo de coalizão na Argentina

Folha de S. Paulo

O que levou o país a escolher entre o dito libertário e o peronismo em ruína?

A única surpresa no segundo turno das eleições presidenciais argentinas foi a margem de vitória entre os candidatos. Foi muito superior ao esperado, o que confere a Javier Milei um mandato claro. Mas ele será minoritário no Congresso, gerando incentivos para que embarque em unilateralismo plebiscitário —o que será provavelmente um dos riscos menores de seu governo.

No mais, nenhuma surpresa. Já havia antecipado na coluna o malogro histórico do peronismo. Milei ganhou em 21 das 24 províncias: é "o candidato do interior sublevado, do subsolo da pátria", como afirmou o cientista político Andrés Malamud.

O peronismo não é mais o mesmo, o que é boa notícia para Milei. Um dos seus traços marcantes é o vale-tudo institucional, sobretudo através de "piqueteros". Mas seu braço sindical está muito enfraquecido. Vale lembrar o bordão "o peronismo, quando perde eleição, não deixa governar". Aconteceu com o radical Raúl Alfonsín (1983-1989), que deixou a Presidência cinco meses antes de o mandato expirar.

O apoio de Patricia Bullrich e Mauricio Macri no segundo turno já apontava para um inédito presidencialismo de coalizão no país. A primeira eleição ampla com representação proporcional ocorreu em 1963, duas décadas depois da brasileira. E durou pouco tempo. Depois do regime militar (1976-1983), permaneceu a clivagem histórica entre radicais (UCR) e peronistas (PJ).

Após a debacle do último governo radical de De la Rúa (1999-01), o sistema partidário se desnacionalizou, faccionalizou, personificou e fragmentou. O campo não peronista cindiu entre o PROS e a UCR, a qual encolheu. O peronismo, entre facções rivais. O partido de Milei elegeu 14% das cadeiras da Câmara, mas, com o apoio pleno do PROS, de micropartidos provinciais (proibidos no Brasil desde 1946) e de parte da UCR, poderá obter uma maioria.

Terá apoio também de governadores de províncias importantes que continuam cruciais malgrado o fim do colégio eleitoral, em 1994, e da eleição de senadores pelas assembleias legislativas das províncias que controlam. Governadores de províncias pequenas também poderão passar a apoiar o governo.

O caráter minoritário do governo não é, portanto, insuperável; a magnitude do ajuste macroeconômico com custos elevadíssimos, sim. O mais impressionante é que Milei foi eleito com uma proposta política de ajuste ultrarradical e não escamoteou o que faria. Aqui não há estelionato eleitoral. A seu favor: pela primeira vez na história há um sentimento público da necessidade de mudança radical. A chave para o drama argentino é perguntar: o que levou o país a se defrontar com a escolha entre alguém como Milei e o peronismo em ruína?

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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