Por Marcelo Osakabe / Valor Econômico
Cobrança de 2% sobre fortunas pode render R$
250 bilhões, estima economista francês
Um imposto global sobre os bilionários pode
ser efetivo mesmo que não exista consenso global sobre o tema. Essa é a aposta
do economista francês Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da União
Europeia, para quem mesmo a ausência dos Estados Unidos, país que abriga perto
de um terço dos cerca de 2,7 mil bilionários do mundo, não impede que o novo
tributo seja eficiente.
Convidado pelo governo brasileiro para
apresentar sua proposta de taxar as grandes fortunas globais em 2% aos
ministros de finanças e presidentes de bancos centrais do G20, na semana
passada, Zucman estima que a medida pode render US$ 250 bilhões por ano, metade
do que se estima que as nações desenvolvidas precisarão para enfrentar mudanças
climáticas.
A proposta chega ao G20 em um momento em que os “dois pilares” propostos pela OCDE para combater a evasão tributária global, que envolvem o imposto corporativo mínimo sobre multinacionais de 15% e o imposto sobre serviços e produtos digitais, sofrem revezes e questionamentos. O economista não vê perigo em sobrepor as agendas e argumenta não ser necessário que a grande maioria adote o imposto para que ele seja efetivo. “Basta que um número suficiente de países implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele”, diz, em entrevista ao Valor.
Aos 37 anos, o francês se firmou como uma das
vozes que advogam contra a crescente concentração de riqueza global — em sua
avaliação, um dos fatores por trás não apenas de crises econômicas, mas também
do enfraquecimento dos regimes democráticos. Protegido de Thomas Piketty, com
quem colaborou em alguns trabalhos, inclusive o famoso “O Capital no Século
XXI”, ele também ganhou fama por usar uma vasta gama de dados, incluindo
vazamentos como os “Panama Papers”, para elucidar os caminhos pelos quais grandes
corporações transnacionais e bilionários se esquivam dos fiscos.
Com dados, ele mostra, por exemplo, que a
adoção de mecanismos de compartilhamento automático de informações bancárias
entre países reduziu a evasão tributária de grandes em empresas a um terço do
que era dez anos atrás. Apesar disso, a perda de receita tributária devido a
essas práticas apenas deixou de crescer, estagnando em cerca de 10% do total
declarado em imposto corporativo no mundo todo.
Sobre os 2.756 bilionários encontrados em sua pesquisa — dos quais 105 habitam a América Latina —, Zucman mostrou que o planejamento tributário permite que a imposto efetivo pago por essa elite caia a uma faixa entre zero e 0,5%. É sobre esse grupo que o imposto global pretende cair, ao menos num primeiro momento, diz.
Leia a seguir os principais trechos da
entrevista:
Como foi a abordagem do governo brasileiro
para que participasse do G20?
Gabriel Zucman: Ao assumir a presidência do
G20, o Brasil queria tornar a desigualdade e a progressividade fiscal
prioridades na agenda. Nos contactaram para saber se estaríamos interessados em
trabalhar em conjunto para avançar com ideias ambiciosas, olhando o futuro da
cooperação tributária internacional e a luta comum contra a desigualdade.
Depois dessa apresentação, continuarão a
trabalhar juntos?
Zucman: Sim. A presidência do G20 nos
encarregou de elaborar um relatório sobre aspectos práticos de imposto mínimo
coordenado sobre super-ricos, bem como resumir estudos existentes e simular
diferentes planos possíveis para esse tributo. Vamos começar a trabalhar nesse
relatório imediatamente e a ideia é entregar o resultado nos próximos meses,
durante a chefia do Brasil no G20.
Como foi a aceitação da proposta no encontro?
Zucman: Duas coisas me chamaram a atenção.
Uma é o número de países — alguns muito importantes — que disseram apoiar
fortemente a proposta, como Brasil e França. A [secretária do Tesouro dos EUA,
Janet] Yellen afirmou que existe algo parecido, embora não tenha sido aprovado.
A segunda é que muitos outros países expressaram apoio à proposta de criar
novos acordos internacionais focados na questão da progressividade fiscal,
tributação dos ricos e combate à desigualdade. O Brasil foi especialmente
elogiado por colocar essas questões na agenda do G20. É preciso deixar claro
também que as discussões estão em um estágio muito inicial, começaram,
literalmente, esta semana [passada]. Há necessidade de uma discussão
internacional inclusiva, para aprofundar detalhes.
Por que 2%?
Zucman: Decidimos por propor 2% apenas para
ter um ponto de partida para o debate. Ele pode ser considerado baixo, já que
muitos países cobram mais de seus ricos. Ao mesmo tempo, o fato é que o
planejamento tributário faz com que a carga efetiva seja menor em muitos casos.
Por isso, uma taxa de 2% já faria diferença se levarmos em consideração a
regressividade efetiva dos nossos sistemas tributários atuais. Com 2%, você
pode compensar muito ou, em alguns países, toda essa regressividade. Claro, não
é suficiente para tornar o sistema tributário global progressivo. Mas isto
também é algo a debater. Existem bons argumentos para adotar taxas mais altas.
Que outros aspectos importantes precisam ser
definidos?
Zucman: O destino das receitas é algo em
aberto. É preciso uma necessidade discussão internacional e inclusiva.
Basicamente, há duas maneiras de abordar isso. Uma é pensar que uma determinada
pessoa que construiu uma enorme fortuna vivendo em um país por 60, 70 anos, se
beneficiou dos e serviços públicos desse país. Por isso, seria legítimo que ao
menos parte dessa arrecadação fique nesse mesmo país. Outra linha argumenta que
bilionários acumulam riqueza na forma de participações em empresas que tem negócios
em todo o mundo, emitem carbono e contribuem para a mudança climática. Sob essa
perspectiva, você pode favorecer uma distribuição muito mais ampla das receitas
entre os países. Mesmo a barra sobre os cerca de 3 mil bilionários pode ser
baixada. Em um primeiro estágio, é conveniente focar nesse grupo porque ele é
pequeno e sua riqueza é relativamente fácil de mensurar.
Os dois pilares do tributo mínimo global
estão sob forte desconfiança. Não existe risco de perder o foco e acabar
prejudicando outras medidas em implementação?
Zucman: Houve um progresso importante nos
últimos anos. O Pilar 2 está sendo implementado em cerca de 35 países neste ano
e poderá alcançar muitos dos 140 países que assinaram o acordo da OCDE adiante.
Talvez alguns deles não ratifiquem o acordo, como é o caso dos EUA no momento.
Mas isto não é problema. Você não precisa, necessariamente, de implementação
global para o imposto mínimo. O texto do imposto contém um princípio muito
importante, o de que países participantes terão direito de tributar multinacionais
localizadas em nações que não ratificaram o acordo, para assegurar que a
tributação alcance esses 15%. Basta que um número suficiente de países
implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele. A mesma lógica pode ser
aplicada aos super-ricos.
Os mecanismos em implementação têm tido
problemas também, como o fato de que empresas continuam migrando seus lucros
para pagarem menos impostos e também de que estão sendo criados novas brechas,
às vezes dentro da própria sistema tributário doméstico. Como combater essa
tendência?
Zucman: O que acredito que está faltando é,
na essência, uma debate mais aberto sobre essas políticas. São detalhes que vêm
sendo discutidos em fóruns altamente técnicos, pouco inclusivos, e isso abriu
as portas para brechas e isenções aparecerem. Mas é possível corrigir isso e
vejo alguns caminhos. A alíquota de 15%, é claramente muito baixa. A maioria
dos países tem alíquotas bastante baixas, mas é difícil argumentar por que
empresas multinacionais deveriam ser autorizadas a pagar muito menos que firmas
pequenas ou médias. Existe um problema com isenções concedidas, que muitas
vezes fazem com que a taxa efetiva acabe menor que 15%. Outro problema diz
respeito ao tratamento dos créditos tributários para a pesquisa e
desenvolvimento. Algumas vezes isto não é entendido como redução da carga
tributária, mesmo que economicamente seja algo equivalente.
Me parece que está advogando por uma espécie
de governança global sobre o tema.
Zucman: Eu acredito, de fato, que é
precisamos de novos acordos tributários em âmbito multilateral. A forma como a
globalização foi regulada na década de 1980 simplesmente não funcionou. Muito
se falou sobre mobilidade de capitais e de comércio, mas houve silêncio em
relação ao tratamento ou a necessidade de progressividade tributária. E digo
que não funcionou porque ajudou a fomentar a desigualdade global.
O retrocesso da globalização, uma
fragmentação maior do mundo, não torna a implementação destas propostas mais
difícil?
Zucman: Não acredito que este ambiente seja
mais desafiador que no passado. O que realmente importa é ter vontade política
de alguns países, uma “coalizão de dispostos”. A razão pela qual acredito que
isto é possível é que existe uma demanda popular avassaladora por tais
políticas praticamente em quase todos os países. No Brasil, nos Estados Unidos
ou na França, se você perguntar se as pessoas acreditam que seus ricos pagam
impostos o suficiente, a grande maioria dirá que não. Vejo apoio maciço nesta
direção, e o fato de que não é preciso unanimidade joga nessa direção. Nem EUA
nem China ratificaram o imposto mínimo sobre multinacionais, mas ainda assim
ele está caminhando. Claro que a política pode interferir. O governo de Joe
Biden é mais simpático à proposta. Se Trump ganhar, claramente isso mudará.
Mas, novamente, a ausência dos EUA não é motivo para inação.
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