Folha de S. Paulo
Vale a pena discutir como o país se mostrou e
e ainda se mostra pronto a acomodar golpistas
Em "Por que
a democracia brasileira não morreu?", os cientistas políticos
Marcus André Melo e Carlos Pereira discutem por que a democracia brasileira
sobreviveu à crise política que começou com os protestos de 2013 e durou até o
fracasso da tentativa de golpe de Jair
Bolsonaro.
O livro tem duas
teses. Uma é muito mais bem demonstrada que a outra.
Os autores estão certos quando dizem que a
culpa das últimas crises políticas não é do presidencialismo de coalizão. Aqui
Melo e Pereira jogam em casa: são autores de um livro clássico sobre como o
sistema político brasileiro funciona melhor do que se pensa ("Making
Brazil Work", de 2013).
Embora acertada, a análise merece um matiz: além dos choques externos, sofremos com legados históricos que enviesaram nosso sistema para a direita. Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).
Por outro lado, em um país desigual como o
Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições
majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda
chegasse ao poder em qualquer cenário.
Por outro lado, discordo dos autores quando
dizem que, durante o bolsonarismo, a democracia nunca correu risco sério. Essa
tese não é demonstrada pelo fracasso do golpe: se um investimento deu certo,
isso não quer dizer que o capitalista nunca correu risco nenhum. Rebeca
Andrade é uma heroína nacional exatamente porque derrotar
Simone Biles era altamente improvável antes da prova.
Os autores apresentam bons argumentos sobre a
complexidade institucional brasileira contemporânea, que tornaria uma
centralização autoritária mais difícil. Entretanto, regimes autoritários podem
lidar com alguma complexidade: a própria ditadura de 64 foi institucionalmente
mais complexa que, por exemplo, o Estado Novo, sem deixar de ser autoritária.
Talvez uma ditadura Bolsonaro fosse só um
passo além da complexidade do regime de 64; ou talvez fosse muito mais
violenta, destruindo parte da complexidade institucional em que Melo e Pereira
talvez apostem fichas demais.
De longe, a maior falha do livro é a análise
muito apressada dos militares. As investigações da Polícia Federal sugerem que
a luta interna nas Forças Armadas, sobre a qual ainda não sabemos o suficiente,
foi muito importante para o fracasso dos extremistas. O livro não dedica muita
atenção aos resultados dessas investigações.
Valeria a pena também discutir como a
política brasileira mostrou-se —e ainda se mostra— pronta a acomodar golpistas.
A bancada bolsonarista, que em 30 de novembro de 2022 pediu golpe
dentro do Congresso Nacional, continua a ser tratada como parte
legítima do jogo democrático. Há candidatos à Presidência do Senado negociando
impeachment de ministro do STF para
conseguir votos dos bolsonaristas.
Melo e Pereira conhecem o funcionamento do
sistema político brasileiro de trás para frente, mas por vezes subestimam o
peso de sua história, bem como as lutas que ocorrem fora dele (no Exército, por
exemplo). De qualquer forma, é um livro que faz as perguntas grandes, e já vem
suscitando boas conversas.
3 comentários:
Muito bom! O colunista tem razão na sua crítica ao livro.
Celso de Barros mostra como a discordância civilizada pode ampliar o campo do conhecimento de um contexto histórico
Uma divergência educada,claro.
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