domingo, 11 de agosto de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Ainda é urgente conter violência contra as mulheres

O Globo

Nos 18 anos da Lei Maria da Penha, questão virou assunto de Estado. Mas é preciso avançar muito mais

Não há como não reconhecer que a Lei Maria da Penha, que completou 18 anos na quarta-feira, representa um avanço no combate à violência contra a mulher. Sancionada em 2006, ela foi batizada com o nome da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que se tornou paraplégica após ser baleada nas costas durante um assalto forjado pelo marido. Como se a violência fosse pouca, dias depois ele ainda tentou eletrocutá-la no banho. A demora para julgar o caso rendeu ao Brasil uma condenação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Em quase duas décadas, a Lei Maria da Penha permitiu que as vítimas tivessem instrumentos mais robustos para enfrentar seus agressores. Como mostrou reportagem do GLOBO, uma de suas consequências foi o aumento do número de medidas protetivas de urgência, que impõem restrições a potenciais agressores se aproximarem das vítimas.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no ano passado a Justiça recebeu 663.704 pedidos de medidas protetivas, dos quais 540.255 (81%) foram concedidos. Em 2022, a Justiça havia recebido 547.201, dos quais 426.297 (78%) foram deferidos. Pela lei, a medida, que pode ser pedida em delegacias especializadas, centros de referência de violência contra a mulher, juizados de violência doméstica e ainda de forma on-line, precisa ser analisada em até 48 horas. O não cumprimento pode ser punido com prisão de seis meses a dois anos.

A promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas, do Ministério Público de São Paulo, afirma que um dos maiores avanços da Lei Maria da Penha foi retirar o tema da violência contra a mulher da esfera privada para tratá-lo como um assunto de Estado. “O coração da Lei Maria da Penha é o aspecto preventivo. Você tem de falar em educação sexual, em educação de gênero. Quando o feminicídio acontece, é porque o Estado falhou na prevenção”.

Apesar do avanço, o Brasil ainda precisa fazer mais para conter a violência contra a mulher. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 expôs o tamanho do desafio, uma vez que os números ainda são alarmantes — e muitos estão em curva ascendente. No ano passado, foram registrados no país 1.467 feminicídios (um aumento de 0,8% em relação ao ano anterior). Significa que quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil. As tentativas de feminicídio também impressionam, com 2.797 ocorrências, quase oito por dia. O número representa aumento de 7,1% em relação ao ano anterior.

Após 18 anos da promulgação da lei, é preciso que a sociedade se pergunte por que, apesar de uma legislação avançada, os casos de violência não arrefecem. A própria vítima que inspirou a lei hoje precisa de proteção policial devido às ameaças de morte disparadas nas redes sociais. “Se a violência contra a mulher é um fenômeno social, que impacta milhares de meninas e mulheres em nosso país, não há mais como conceber qualquer tipo de alienação masculina”, diz a promotora de Justiça Silvia Chakian, do Ministério Público de São Paulo. “Exige-se que aquele que é parte do problema também seja parte da solução.”

Belém tem deficiências para sediar a COP 30, mas deve evitar erros do Rio

O Globo

Na Olimpíada de 2016, previsões otimistas inflaram ampliação de hospedagem e criaram ociosidade

Como qualquer cidade que recebe um grande evento, Belém, que sediará a Conferência do Clima (COP30) entre 10 e 21 de novembro do ano que vem, enfrenta desafios para acomodar os milhares de participantes — são esperados entre 40 mil e 60 mil. Só os integrantes das equipes da ONU e das delegações dos países devem chegar a 7 mil. Segundo a Secretaria Extraordinária para a COP30 do governo federal, a capital do Pará reúne hoje cerca de 18 mil leitos, o que na melhor das hipóteses representa menos da metade do necessário.

O problema não diz respeito apenas ao número, mas também à qualidade das habitações. Estima-se que a conferência demandará 14 mil vagas nas categorias quatro e cinco estrelas. Hoje Belém tem apenas dois hotéis cinco estrelas em pleno funcionamento—outros dois deverão ser entregues por meio de retrofit de prédios antigos. A despeito do desafio, o governador do Pará, Helder Barbalho, garante que a situação está sob controle.

Evidentemente, esse não é um problema apenas para Belém, cidade de 1,3 milhão de habitantes. Acomodar até 60 mil pessoas durante um megaevento seria um desafio para qualquer capital brasileira, mesmo as que dispõem de boa infraestrutura hoteleira, como Rio e São Paulo. Por isso, é acertada a estratégia dos organizadores de buscar soluções temporárias.

Uma das ideias cogitadas é a utilização de transatlânticos, como aconteceu na Olimpíada do Rio. O plano é que pelo menos dois fiquem ancorados na Baía de Guajará. Eles poderiam receber de 5 mil a 6 mil pessoas na categoria quatro e cinco estrelas. Outra hipótese levantada é o uso de navios de expedição à Antártica, que poderiam oferecer até 300 cabines de luxo. Mas para que grandes navios cheguem ao Porto de Belém, será necessário fazer obras de dragagem, que já estão sendo providenciadas.

A escolha de Belém como sede da COP30 no Brasil foi uma decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela foi anunciada em maio de 2023 e confirmada apenas em dezembro. Por óbvio, os prazos para melhorar a infraestrutura são exíguos. E a hospedagem não é a única preocupação. Belém tem sérios problemas ambientais, especialmente na área de saneamento, o que certamente chamará a atenção durante a conferência. Mesmo com investimentos públicos de R$ 4 bilhões, não será possível resolver pendências de décadas.

O que Belém não pode fazer é repetir os erros do Rio ao sediar a Olimpíada de 2016. O número de quartos na cidade foi ampliado demasiadamente, seguindo as demandas do Comitê Olímpico Internacional (COI). A expectativa otimista de aumento no número de visitantes depois de terminado o evento acabou não se confirmando.

Dentro do possível, Belém deve aproveitar o megaevento para realizar obras que melhorem a qualidade de vida de seus moradores, evitando estruturas caras que possam ficar ociosas após a conferência.

Temor de recessão nos EUA ainda é prematuro

Folha de S. Paulo

Após reação exagerada, mercados se acalmam; juros menores lá facilitam o trabalho do BC aqui, mas governo tem de ajudar

Nos últimos dois meses consolidou-se uma mudança relevante no quadro econômico internacional. Evidências de desaceleração na atividade e preços sob controle devem levar a menores taxas de juros nos Estados Unidos, o que é notícia positiva, desde que não haja uma recaída recessiva.

De fato, no período houve notável redução no ímpeto da inflação, que parece agora se aproximar da meta de 2% ao ano perseguida pelo Federal Reserve (Fed), o banco central americano. O crescimento do Produto Interno Bruto ainda se mantém perto de 2%, mas com cada vez menos exuberância.

A combinação vinha sendo bem recebida, mas os resultados mais recentes do mercado de trabalho sugerem que pode estar aumentando o risco de uma recessão.

Na leitura relativa a julho, divulgada em 2 de agosto, pela primeira vez em vários meses a criação de novas vagas ficou abaixo das expectativas. Mais preocupante, no mês o desemprego subiu de 4,1% para 4,3%. Numa média de três meses, a taxa cresceu 0,5 ponto percentual, algo que no passado se mostrou compatível com retração da atividade econômica.

Esse foi um dos motivos para a reação abrupta dos mercados financeiros, com queda notável e rápida nas Bolsas de Valores pelo mundo e ampliação da expectativa de cortes mais rápidos dos juros.

Nos dois dias seguintes à divulgação da alta no desemprego, as ações americanas caíram cerca de 5%, o dólar perdeu força ante outras divisas e a taxa de juros de prazo mais longo, dez anos, passou de 4% para 3,8% anuais.

Tais movimentos já foram em parte revertidos, o que mostra seu caráter efêmero e especulativo. Outros indicadores, como a geração de renda das famílias e a situação financeira das empresas, indicam ser prematuro concluir que uma recessão se aproxima.

De todo modo, a mensagem de que o dinamismo excepcional da economia americana possa estar ficando para trás deve ter certa permanência. Uma consequência por ora favorável é que se consolidou a expectativa de que o Fed começará a cortar os juros em setembro. As projeções atuais sugerem redução de até 2 pontos percentuais, para 3,5%, até o final de 2025.

Para o Brasil, trata-se a princípio de um quadro positivo. Menor restrição monetária global e dólar menos valorizado, desde que sem recessão, tendem a facilitar o trabalho do Banco Central.

Ao contrário do que se observa nos EUA, contudo, por aqui a inflação e os juros permanecem com viés altista, pois persistem a incerteza em relação à gestão autônoma do BC e a gastança no Orçamento federal. Reduzir essas fontes de pressão é, pois, urgente.

O público e o privado

Folha de S. Paulo

Gestão federal dá exemplo e contraexemplo de controle de conflitos de interesse

Não há Estado democrático de Direito sem transparência. A população precisa ter acesso a informações a respeito do poder público, tanto para exercer algum controle sobre suas ações como para assegurar a eficácia de suas medidas.

Mas a transparência não é absoluta. Por óbvio, nem toda reunião de governo deve ser filmada e divulgada, sob o risco de afetar a sinceridade e a espontaneidade de servidores, piorando a qualidade do processo deliberativo.

O grau exato depende, portanto, do tipo de atividade envolvida, suas especificidades e possíveis repercussões dos atos. Idealmente, cada setor do poder público deveria obedecer a um conjunto de regras claras sobre o tema.

Se tal tarefa já é complexa, o desafio fica ainda maior quando se trata de potenciais conflitos de interesses do funcionalismo. Recentemente, o noticiário estampou um exemplo e um contraexemplo de como se deve proceder.

No primeiro caso, o Banco Central anunciou novas regras para as reuniões entre seus diretores e agentes do mercado financeiro e outros grupos. A norma, bastante detalhista, descreve até como deve dar-se o agendamento.

Se há o risco de que que a burocracia soe excessiva, ele é amplamente compensado pelo benefício legado à instituição, que assim se mostra empenhada em aprimorar seu trabalho e sua imagem.

O contraexemplo vem do governo federal. Sem passar por nenhum tipo de quarentena, dois funcionários do alto escalão que atuaram na regulamentação de sites de apostas e deixaram o serviço público foram liberados para trabalhar como advogados de empresas do setor.

Pode-se considerar que a quarentena é pouco eficaz. Um intervalo de meses não diminuiria o valor do conhecimento que os ex-servidores levam para a outra parte.

O que está em jogo, no entanto, são também atitudes. O Estado precisa deixar claro à sociedade que se preocupa em evitar relacionamentos promíscuos entre agentes públicos e privados.

Essa simples disposição contribui para o fortalecimento das instituições; já ignorar os conflitos de interesse mina seu prestígio.

Uma Previdência mais justa

O Estado de S. Paulo

País precisa de uma nova reforma, e não só por razões fiscais. É preciso propor mudanças que reduzam iniquidades, incentivem contribuições e adiem a entrada de beneficiários no sistema

O País terá de discutir uma nova reforma da Previdência em breve se quiser evitar o colapso do sistema. Alertas como este já haviam sido feitos recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre FGV). Nesta semana, um novo estudo do Banco Mundial veio reforçar essas conclusões.

No estudo, publicado pelo jornal Valor, as autoras Asta Zviniene e Raquel Tsukada informam que em 2020 o País já tinha cerca de 15 idosos com mais de 65 anos para cada 100 adultos entre 20 e 64 anos. A relação ainda é considerada relativamente confortável, mas o Brasil está envelhecendo tão rápido que ela deve dobrar em apenas 23 anos, algo que levou 62 anos para ocorrer nos países de alta renda.

Manter essa mesma relação entre idosos e jovens só seria possível se a idade mínima para a aposentadoria fosse elevada a 72 anos em 2040 e a 78 anos em 2060, algo politicamente inviável. Outros países da América Latina compartilham do mesmo problema, mas o Brasil tem questões próprias que tornam o desafio ainda maior.

Os pontos destacados pelas autoras vão além da questão fiscal. Elas buscam expor o quanto o sistema previdenciário tem reforçado iniquidades. Uma delas é o fato de que o sistema desencoraja um trabalhador a acumular um tempo de contribuição mais longo, pois isso não se reflete em um benefício mais elevado. Tampouco há muita diferença nos valores dos benefícios pagos a quem contribuiu e a quem não contribuiu com o sistema.

Outra é a prática de usar a Previdência Social para recompensar alguns grupos por desigualdades históricas e estruturais ou pelas contribuições sociais vinculadas ao ofício. É o que justifica que mulheres, trabalhadores rurais, professores, profissionais de saúde e segurança pública e microempreendedores individuais (MEIs) tenham alguns privilégios, como alíquotas de contribuição mais baixas e critérios de elegibilidade menos rigorosos.

No entanto, esses objetivos são mais bem abordados, diz o estudo, “por meio de políticas separadas e especificamente desenvolvidas para o propósito em questão – sistemas judiciais para tratar da discriminação, leis de remuneração justa para garantir uma compensação adequada pelo trabalho e políticas de mercado de trabalho que garantam oportunidades de mudança de ocupação quando necessárias por motivos de saúde”.

Dado relevante mencionado pelas autoras diz respeito às desigualdades intergeracionais. Segundo elas, enquanto mais de 40% das crianças brasileiras vivem e crescem em condições de pobreza, a maioria dos idosos ocupa o meio da pirâmide de distribuição de renda. Isso ocorre porque o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos pobres como uma prestação de assistência social, tem limite de elegibilidade por renda per capita mais alto que o Bolsa Família. Além disso, o valor do BPC, que corresponde a um salário mínimo, é o dobro do piso do Bolsa Família.

Ao Valor, Matsuda destacou que a Previdência Social deveria se ater a proteger os idosos de cair em uma situação de pobreza, e não a reduzir a pobreza como um todo nem a servir como ferramenta com foco na distribuição de renda ou a resolver outras desigualdades históricas que o País acumula há décadas.

Intitulado O Sistema Previdenciário Brasileiro sob a Ótica da Equidade, o estudo cita que, em 2020, apenas 20,7 milhões dos 32,2 milhões de beneficiários de aposentadorias tinham 65 anos ou mais. Por outro lado, somente 56,4% da população economicamente ativa, ou 51,5 milhões de pessoas, contribuía com o sistema.

Os números evidenciam que há espaço para adiar a entrada de beneficiários e incentivar trabalhadores a contribuir com o sistema previdenciário. Mas isso não acontecerá somente com a redução do desemprego e com o aumento da formalização no mercado de trabalho. Será preciso promover mudanças profundas no sistema, não apenas por motivos fiscais, mas para tornar o sistema mais justo para todos.

No caminho certo contra o crime

O Estado de S. Paulo

Megaoperação com bem-sucedida articulação de autoridades estaduais e federais na Cracolândia desnuda ecossistema do PCC, que inclui até milícia. Estado agora precisa retomar território

Passadas décadas de abandono da Cracolândia pelo poder público, as autoridades parecem finalmente ter decidido avançar sobre a estrutura do crime organizado no centro de São Paulo. Com o uso de mais inteligência e menos voluntarismo, uma megaoperação liderada pelo Ministério Público de São Paulo e pela Secretaria da Segurança Pública desnudou o ecossistema das atividades ilícitas do Primeiro Comando da Capital (PCC) na região, que, agora, inclui até milícia formada por agentes da Guarda Civil Metropolitana e policiais. A escolha por ações que atacam as causas, e não as consequências, desse problema que envergonha e revolta os paulistanos começa a apresentar seus possíveis primeiros resultados contra os criminosos.

A Operação Salus et Dignitas (saúde e dignidade, em latim) levou às ruas um grande contingente de policiais, mas não sem antes realizar um profundo trabalho de investigação. Pela primeira vez, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), sob a chefia do promotor Lincoln Gakiya, entrou no enfrentamento da facção na Cracolândia e, acertadamente, tirou o foco dos usuários de drogas e privilegiou a cooperação entre instituições de Estado. Este talvez seja o maior diferencial entre a ação deflagrada há poucos dias e operações passadas, quase todas orientadas por tentativa e erro.

O chamado “fluxo” da Cracolândia, que perambula pelo centro, é apenas a face mais visível de uma teia criminosa. Ao sufocar as atividades econômicas ilícitas que mantêm aberta aquela chaga no coração de São Paulo, as autoridades, enfim, parecem trilhar o caminho certo no combate ao crime organizado. Houve intercâmbio de informações que envolveu os Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho, a Secretaria da Segurança, as Receitas Federal e Estadual, o Ministério do Trabalho e Emprego e até a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que ajudou a detectar os equipamentos usados pelos bandidos para interceptar a comunicação da polícia.

O ecossistema do crime inclui tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, corrupção, comércio ilegal de produtos ilícitos, comércio de armas, exploração sexual, servidão – com exploração até de trabalho infantil –, imigração ilegal e crimes ambientais. Ao fim, a ação com 1,3 mil agentes das Polícias Militar, Civil, Rodoviária Federal e Federal, em mais uma prova do êxito do esforço conjunto, prendeu três integrantes do PCC e três milicianos.

Tantos crimes perturbam, mas não surpreendem. Como escreveram os promotores, “um local sem a presença do Estado se torna condescendente” com práticas ilícitas. E foi justamente desse tipo de ausência, seguida de negação, que o PCC nasceu no sistema carcerário na década de 1990 e, depois, ganhou as ruas, para formar uma poderosa organização financeira e bélica que pratica crimes mundo afora. Agora, a inépcia do Estado permitiu que oportunistas fardados passassem a se organizar como máfia. Um grupo com mais de 20 guardas-civis, 3 policiais militares e 1 investigador extorquiu mais de R$ 4 milhões de comerciantes em troca de “proteção” na Cracolândia.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, reconheceu que, quando há “um problema generalizado, de algum tempo”, é possível haver “situações de corrupção, de prevaricação e de falha no exercício do poder de polícia”. Já o prefeito Ricardo Nunes, que defende uma Guarda Civil forte como um dos motes da campanha à reeleição, correu a dizer que “desconhece milícia” na cidade. De fato, até agora não havia notícia de milícias como as do Rio de Janeiro, mas, como mostra a história, não parece prudente minimizar os riscos.

Ao revelar o ecossistema do crime, a Operação Salus et Dignitas evidenciou que o Estado precisa retomar o território da Cracolândia. E o caminho para isso é a manutenção de ações coordenadas de autoridades de todas as esferas de poder, com investigações que envolvem inteligência e colaboração. Como sugere o nome da força-tarefa, São Paulo demanda saúde e dignidade, além de segurança. Essa força-tarefa dá a esperança de que algo já tenha mudado.

Prejuízo ‘abrasileirado’

O Estado de S. Paulo

Petrobras tem perda bilionária como resultado do atendimento a desejos do governo

O prejuízo de R$ 2,6 bilhões da Petrobras no segundo trimestre do ano, uma surpresa para todo o mercado financeiro, que projetava lucro – menor do que o de períodos anteriores, mas ainda assim lucro –, foi classificado pela empresa como um resultado “associado a itens não recorrentes”. O que pesou foram os efeitos da intensa variação cambial no período e o acordo bilionário fechado com o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o tribunal de recursos para punições aplicadas pela Receita Federal.

Ambos os motivos remetem, sem muito esforço, a ações do governo Lula da Silva sobre a empresa. A desvalorização do real, que, entre abril e junho, bateu nos 11,2%, seria suficiente para justificar – tanto pelo nível de oscilação quanto pelo tempo – aumento de preços na fonte de receitas da empresa, os combustíveis. Mas, sob a amarra do governo contra o impopular aumento, a Petrobras esticou o prazo o quanto pôde e somente em julho entregou os pontos e reajustou a gasolina e o gás de cozinha.

Desde que decidiu, em março do ano passado, deixar de seguir a paridade com os preços internacionais, obedecendo a uma ordem de Lula para “abrasileirar” o preço dos combustíveis, a política de preços da Petrobras ficou menos previsível e coerente. Se antes era difícil presumir, por exemplo, o espaço de tempo fixado pela empresa para seguir os novos valores do petróleo e derivados no mercado internacional, a decisão passou a ser totalmente arbitrária.

A variação do câmbio, porém, traz custos impossíveis de serem ignorados, a não ser no universo lulopetista, que vive a ilusão do país autossuficiente, que desdenha do cenário externo. O resultado está aí, com o “abrasileiramento” de um balanço que desde 2020, no período danoso da epidemia de covid, não registrava prejuízo.

Em relação ao acordo no Carf, que garantiu ao Tesouro o pagamento de R$ 19,8 bilhões pela Petrobras para encerrar processos administrativos e fiscais, a empresa atendeu aos apelos do governo para ajudar a melhorar as contas públicas no ano. E foi chamada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de exemplo a ser seguido. Quando a companhia fechou o acordo, em junho, a Receita havia informado que não registrara a adesão de nenhum contribuinte ao programa, uma das principais apostas de aumento de arrecadação para este ano.

Mas a Petrobras fez a sua parte, mesmo à custa de passar o balanço de azul para vermelho. Para acalmar o mercado, anunciou – sob protestos da poderosa FUP, a federação sindical que recobrou voz de comando sob a gestão lulopetista – a distribuição de dividendos, usando parte da reserva formada com os dividendos extraordinários do ano passado, que o governo reteve. Em comunicado, a FUP reclama que é preciso decidir se a Petrobras vai usar a “renda petroleira” para investimentos ou para pagar dividendos a acionistas “sobretudo privados e internacionais”, propositalmente desconsiderando que a maior fatia vai para o próprio Tesouro. A relação da estatal com seus investidores privados nunca esteve tão esgarçada, o que prejudica sobremaneira a empresa.

Diplomacia enfrenta teste de competência

Correio Braziliense

É fundamental que a chancelaria do presidente Luiz Inácio Lula da Silva atue de modo a distensionar o ambiente deflagrado na região

A tensão diplomática que se instalou na América Latina constitui o desafio mais urgente para a política externa brasileira. É fundamental que a chancelaria do presidente Luiz Inácio Lula da Silva atue de modo a distensionar o ambiente deflagrado na região. Para alcançar esse fim, o Palácio do Planalto e o Itamaraty precisam explicitar valores dos quais o Brasil não abre mão — entre os quais, o compromisso inarredável com a democracia e os direitos humanos.

Nem sempre tem sido assim. A escalada autoritária de Nicolás Maduro na Venezuela, há anos, vem sendo tolerada pela esquerda brasileira, em particular pelo atual chefe do Planalto. Enquanto político progressista, Lula pode até declarar simpatia — ainda que muito questionável — ao chavismo e seus representantes. Mas a partir do momento em que representa o Estado brasileiro, tem o dever de expressar contundente repúdio a movimentos antidemocráticos de toda sorte — como perseguição e prisão de adversários políticos —, bem como manifestar séria preocupação com a crise política em Caracas.

Foram inadequados, portanto, os comentários emitidos por Lula dois dias depois do pleito de 28 de julho. "Não tem nada de grave. Não tem nada de assustador. Tem uma eleição, tem uma pessoa que disse que teve 41%, teve outra pessoa que disse que teve 50%, entra na Justiça e a Justiça faz", disse o presidente. Ora, é público e notório que o Poder Judiciário na Venezuela, cooptado pelo chavismo, carece de credibilidade. Acreditar que o processo eleitoral no país vizinho está revestido de transparência e legitimidade, sem uma inequívoca comprovação documental, é mero exercício de retórica.

Transmite um pouco mais de seriedade a declaração conjunta de Brasil, México e Colômbia, divulgada na última quinta-feira, na qual se exige a divulgação das atas de votação do pleito venezuelano. Passados 14 dias da eleição, não há sinal de que o regime de Nicolás Maduro pretenda trazer à luz do dia a comprovação de sua vitória nas urnas. Ante o escapismo de Caracas, cumpre ao governo brasileiro manter posição intransigente pela preservação do rito democrático, com o devido reconhecimento tanto do regime chavista quanto de seus opositores.

Firmeza e convicção democrática também devem ser mantidas com o regime de Daniel Ortega, da Nicarágua. Agiu corretamente o governo brasileiro ao expulsar a embaixadora nicaraguense, em gesto de reciprocidade ao ato arbitrário cometido por Manágua em relação ao embaixador Breno de Souza da Costa. O episódio evidencia como urge ao presidente Lula corrigir a complacência com Ortega — em 2021, o petista chegou a ponto de comparar a permanência do ditador latino-americano no poder ao longevo governo da ex-chanceler alemã Angela Merkel. Máscaras de ditadores não demoram a cair.

Reconhecida como uma das mais qualificadas do mundo, a diplomacia brasileira terá de trabalhar com afinco para evitar que miopias ideológicas levem a posturas equivocadas em contenciosos internacionais. A tensão política na América Latina — onde regimes ultraliberais convivem com esquerdistas — demanda uma política externa equilibrada, técnica e firme, que deixe clara as diretrizes democráticas do Estado brasileiro.

 



 

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