segunda-feira, 11 de agosto de 2008

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DOHA E A HEGEMONIA PERDIDA
Luiz Carlos Bresser-Pereira

O Brasil perdeu, porque a rodada nos beneficiava, mas ganharam os países pobres liderados pela Índia

POR QUE a Rodada Doha fracassou depois de sete anos de negociações enquanto a Rodada Uruguai foi "bem-sucedida", apesar de haver beneficiado muito mais os países ricos do que os países em desenvolvimento? Ainda que possamos dar muitas respostas específicas a essa pergunta, sugiro que a resposta mais geral é a de que ela refletiu a perda da hegemonia americana nestes últimos 15 anos. Só essa hegemonia ideológica tendo como bandeira o neoliberalismo explica que os países em desenvolvimento tenham concordado em assinar o acordo em 1993 que reduzia de forma substancial seu "espaço de políticas", ou seja, sua capacidade de promover um tipo de política industrial que os países ricos, em fase correspondente de desenvolvimento econômico, praticaram com toda liberdade. Naquela época, o colapso recente da União Soviética levara o "soft power" americano às alturas, a tese do caminho único para o desenvolvimento parecia confirmada, as reformas neoliberais estavam na ordem do dia, e a Rodada Uruguai foi aprovada nesse clima.

Agora, o colapso da Rodada Doha surpreendeu a todos. Desde o início das negociações, o Brasil estabelecera como objetivo a redução dos subsídios agrícolas dados na Europa e nos Estados Unidos, enquanto estes demandavam redução das tarifas na indústria e maior abertura dos serviços. Quando os países ricos desistiram de insistir na abertura dos serviços e de incluir nas negociações outros itens não-comerciais e quando aceitaram a proposta intermediária do diretor-geral da OMC, o Brasil também aceitou o acordo e imaginou que os demais países em desenvolvimento o seguiriam. Não contava com resistência tão forte da Argentina e principalmente da Índia.

Essa resistência, entretanto, é razoável. A Argentina, depois da embriaguez neoliberal dos anos 1990, procura reconstruir sua indústria e, além de não cometer o suicídio ao deixar que a taxa de câmbio se aprecie, conta com barreiras alfandegárias para se reindustrializar. Mais surpreendente para todos foi a razão do veto dos indianos. Eles deixaram muito claro que só concordariam com a rodada se pudessem contar com uma maior liberdade de salvaguardar sua agricultura familiar quando esta fosse ameaçada por commodities produzidas no exterior a custo eventualmente mais baixo. A Índia, como ainda boa parte do Terceiro Mundo, conta com a agricultura familiar para garantir emprego e segurança alimentar.

Não pode, portanto, concordar com um acordo que torne esse setor econômico e social vulnerável, à mercê das forças imprevisíveis do mercado.

Se estivéssemos ainda no clima dos anos 1990, essa rodada poderia ter sido concluída. No final dos anos 2000, porém, compreende-se por que os países ricos não logram mais impor seu poderio com tanta facilidade. Nesse período, suas reformas neoliberais se revelaram concentradoras de renda e incapazes de promover o desenvolvimento econômico; um número crescente de países em desenvolvimento, agora liderados pela Índia e pela China, alcançaram taxas extraordinárias de crescimento e mudaram o equilíbrio internacional de poderes; e a lastimável Guerra do Iraque e a crise financeira atual enfraqueceram o "hegemon". O Brasil perdeu, porque a rodada nos beneficiava, mas ganharam os países pobres liderados pela Índia.


LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 73, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

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