Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tenho tomado às vezes o tema da autonomia do Estado e as ambigüidades que envolve. Uma primeira delas é o que há de equívoco quanto ao reclamo de que o Estado seja ou não seja autônomo: o ideal de "soberania popular", supondo um "povo" homogêneo, repele a idéia do Estado autônomo, mas o reconhecimento da desigualdade social justifica a busca de autonomia do Estado, de forma a evitar que ele se torne o instrumento dos interesses poderosos. Esse espaço de problemas se superpõe parcialmente ao recoberto pela distinção entre o Estado como "sujeito", que estabelece e persegue com um grau importante de autonomia os seus próprios fins, e o Estado como "arena", em cuja aparelhagem os interesses diversos da sociedade se fazem representar e produzem de maneira mais problemática os fins a serem perseguidos pelo Estado, como resultante de sua interação institucional e democrática. Um bom "Estado-arena" é condição do bom "Estado-sujeito", conformado de modo a permitir que o grau necessário de autonomia redunde na busca efetiva do interesse público. Em todo caso, o que está em jogo aqui é a relação da máquina geral do Estado com os interesses que se dão na sociedade, e os perigos a serem evitados correspondem ao que alguns chamaram de "pretorianismo", indicando o jogo de vale-tudo em que forças diversas usam recursos de qualquer natureza para promover no Estado seus interesses próprios ou, eventualmente, implantam a ditadura e o controlam de vez pela força.
Mas o Brasil do momento permite apreciar um outro sentido que a expressão "Estado-arena" pode adquirir: aquele em que setores diversos da própria aparelhagem do Estado, e até diferentes partes de cada um de diversos setores, passam a constituir-se em interesses antagônicos e a enfrentar-se entre si. Polícia contra polícia, polícia contra Abin, Justiça contra polícia, cortes superiores de Justiça contra juízes de instâncias inferiores, Congresso contra Justiça, Ministério Público a cutucar de lá e de cá... Claro, nem todos os enfrentamentos que presenciamos merecem ser avaliados nos mesmos termos do ponto de vista dos desígnios maiores a orientarem nosso arcabouço institucional, e alguns deles são mesmo parte institucionalmente normal do relacionamento entre diferentes órgãos no cumprimento da função jurisdicional do Estado. Mas creio haver uma pergunta de grande relevância: a de até que ponto as deficiências do nosso Estado quanto a constituir-se em arena democraticamente equilibrada dos grandes interesses da sociedade como tal (em alguns casos interesses antes latentes, justamente pela carência de condições de se tornarem politicamente vocais) seria o fator talvez decisivo das brigas miúdas que causam cada vez maior perplexidade.
Os casos em que o Judiciário se vê diretamente envolvido têm, naturalmente, maior interesse. Tratando-se do poder de que se espera a garantia isenta e douta da lei e do direito, é perturbador ter seus representantes, em instâncias formais ou informais, em refregas frequentes e bate-bocas irados. Tem-se falado de "judicialização da política" e "politização da Justiça". Há um sentido em que a primeira pode até ser vista com bons olhos: trata-se, afinal, do recurso de contendores políticos às agências destinadas precisamente a dirimir os conflitos. O problema reside na politização da Justiça (que a excessiva judicialização da política pode acabar por favorecer) e, especialmente, no fato de que essa politização possa assumir, por exemplo, a forma desmoralizante de brigas públicas entre juízes de instâncias diversas que se xingam enquanto invocam princípios elevados para prender e soltar - e enquanto algum deles não acaba na cadeia ele próprio.
Vimos há dias o juiz Fausto de Sanctis a defender publicamente, no Rio, um ativismo jurídico que parte da idéia de que a Constituição é mutável e dinâmica para defender atuação menos ortodoxa no caso de crimes de colarinho branco. Apesar de sua atuação na direção contrária no caso rumoroso de Daniel Dantas, também de membros do STF temos visto a mesma defesa de uma postura ativista, em que competiria ao órgão não apenas interpretar a Constituição, mas ocasionalmente também reinterpretá-la - e legislar, portanto. Essa postura ativista ou "construtivista" se mostra com nitidez na história do Judiciário dos Estados Unidos, por exemplo, donde o conflito político e as idas e vindas em torno da composição conservadora ou progressista da Suprema Corte. A diferença, como já apontei aqui anteriormente, reside no caráter decididamente partidário que o enfrentamento assume no caso dos EUA, o que, quando nada, envia ao cidadão sinais claros, de certa maneira, sobre o que se acha em jogo na disputa. Não obstante o que se possa salientar de negativo na talvez excessiva penetração institucional dos partidos e suas consequências na partidarização da própria Justiça, temos com as organizações partidárias, no caso estadunidense, um fator de agregação dos múltiplos conflitos que corresponde a uma das funções classicamente atribuídas aos partidos, ao lado da de mera vocalização dos interesses "dados" na estrutura social.
Em nosso caso, os partidos estão longe de executar de maneira adequada e sociopsicologicamente densa essa função agregadora. Daí a preponderância fatal, no condicionamento geral do exercício da função jurisdicional do Estado, do papel cumprido em surdina pelo fosso social produzido por nossa longa história de desigualdade. As relações de causalidade são complexas, e o fosso social é ele mesmo, com certeza, um grande obstáculo ao enraizamento de partidos agregadores e efetivos. De todo modo, nessa arena precária, um bom Estado-sujeito é provavelmente um sonho vão.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Tenho tomado às vezes o tema da autonomia do Estado e as ambigüidades que envolve. Uma primeira delas é o que há de equívoco quanto ao reclamo de que o Estado seja ou não seja autônomo: o ideal de "soberania popular", supondo um "povo" homogêneo, repele a idéia do Estado autônomo, mas o reconhecimento da desigualdade social justifica a busca de autonomia do Estado, de forma a evitar que ele se torne o instrumento dos interesses poderosos. Esse espaço de problemas se superpõe parcialmente ao recoberto pela distinção entre o Estado como "sujeito", que estabelece e persegue com um grau importante de autonomia os seus próprios fins, e o Estado como "arena", em cuja aparelhagem os interesses diversos da sociedade se fazem representar e produzem de maneira mais problemática os fins a serem perseguidos pelo Estado, como resultante de sua interação institucional e democrática. Um bom "Estado-arena" é condição do bom "Estado-sujeito", conformado de modo a permitir que o grau necessário de autonomia redunde na busca efetiva do interesse público. Em todo caso, o que está em jogo aqui é a relação da máquina geral do Estado com os interesses que se dão na sociedade, e os perigos a serem evitados correspondem ao que alguns chamaram de "pretorianismo", indicando o jogo de vale-tudo em que forças diversas usam recursos de qualquer natureza para promover no Estado seus interesses próprios ou, eventualmente, implantam a ditadura e o controlam de vez pela força.
Mas o Brasil do momento permite apreciar um outro sentido que a expressão "Estado-arena" pode adquirir: aquele em que setores diversos da própria aparelhagem do Estado, e até diferentes partes de cada um de diversos setores, passam a constituir-se em interesses antagônicos e a enfrentar-se entre si. Polícia contra polícia, polícia contra Abin, Justiça contra polícia, cortes superiores de Justiça contra juízes de instâncias inferiores, Congresso contra Justiça, Ministério Público a cutucar de lá e de cá... Claro, nem todos os enfrentamentos que presenciamos merecem ser avaliados nos mesmos termos do ponto de vista dos desígnios maiores a orientarem nosso arcabouço institucional, e alguns deles são mesmo parte institucionalmente normal do relacionamento entre diferentes órgãos no cumprimento da função jurisdicional do Estado. Mas creio haver uma pergunta de grande relevância: a de até que ponto as deficiências do nosso Estado quanto a constituir-se em arena democraticamente equilibrada dos grandes interesses da sociedade como tal (em alguns casos interesses antes latentes, justamente pela carência de condições de se tornarem politicamente vocais) seria o fator talvez decisivo das brigas miúdas que causam cada vez maior perplexidade.
Os casos em que o Judiciário se vê diretamente envolvido têm, naturalmente, maior interesse. Tratando-se do poder de que se espera a garantia isenta e douta da lei e do direito, é perturbador ter seus representantes, em instâncias formais ou informais, em refregas frequentes e bate-bocas irados. Tem-se falado de "judicialização da política" e "politização da Justiça". Há um sentido em que a primeira pode até ser vista com bons olhos: trata-se, afinal, do recurso de contendores políticos às agências destinadas precisamente a dirimir os conflitos. O problema reside na politização da Justiça (que a excessiva judicialização da política pode acabar por favorecer) e, especialmente, no fato de que essa politização possa assumir, por exemplo, a forma desmoralizante de brigas públicas entre juízes de instâncias diversas que se xingam enquanto invocam princípios elevados para prender e soltar - e enquanto algum deles não acaba na cadeia ele próprio.
Vimos há dias o juiz Fausto de Sanctis a defender publicamente, no Rio, um ativismo jurídico que parte da idéia de que a Constituição é mutável e dinâmica para defender atuação menos ortodoxa no caso de crimes de colarinho branco. Apesar de sua atuação na direção contrária no caso rumoroso de Daniel Dantas, também de membros do STF temos visto a mesma defesa de uma postura ativista, em que competiria ao órgão não apenas interpretar a Constituição, mas ocasionalmente também reinterpretá-la - e legislar, portanto. Essa postura ativista ou "construtivista" se mostra com nitidez na história do Judiciário dos Estados Unidos, por exemplo, donde o conflito político e as idas e vindas em torno da composição conservadora ou progressista da Suprema Corte. A diferença, como já apontei aqui anteriormente, reside no caráter decididamente partidário que o enfrentamento assume no caso dos EUA, o que, quando nada, envia ao cidadão sinais claros, de certa maneira, sobre o que se acha em jogo na disputa. Não obstante o que se possa salientar de negativo na talvez excessiva penetração institucional dos partidos e suas consequências na partidarização da própria Justiça, temos com as organizações partidárias, no caso estadunidense, um fator de agregação dos múltiplos conflitos que corresponde a uma das funções classicamente atribuídas aos partidos, ao lado da de mera vocalização dos interesses "dados" na estrutura social.
Em nosso caso, os partidos estão longe de executar de maneira adequada e sociopsicologicamente densa essa função agregadora. Daí a preponderância fatal, no condicionamento geral do exercício da função jurisdicional do Estado, do papel cumprido em surdina pelo fosso social produzido por nossa longa história de desigualdade. As relações de causalidade são complexas, e o fosso social é ele mesmo, com certeza, um grande obstáculo ao enraizamento de partidos agregadores e efetivos. De todo modo, nessa arena precária, um bom Estado-sujeito é provavelmente um sonho vão.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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